Como Giorgia Meloni beneficiou do regresso da Itália ao fascismo
A chegada ao Poder de Giorgia Meloni foi um processo “que levou anos”, mas que se “desenrolou diante dos nossos olhos”, considera o professor de Política Italiana da Universidade de Bath George Newth.
A ascensão da política de extrema-direita Giorgia Meloni surpreendeu a comunidade internacional, “mas não os próprios italianos”. Fora da Itália perguntou-se como a sua postura do que muitos argumentam ser fascismo alcançou tanto destaque num país que experimentou a vida sob a ditadura de Benito Mussolini. “A resposta pode está na recente normalização da política reacionária”, considera o professor de Política Italiana da Universidade de Bath George Newth.
Na verdade, a existência de “um governo de extrema-direita na Itália não é totalmente novidade na era pós-guerra”. “Entre 1994 e 2011, uma aliança rotulada de ‘centro-direita’ – a Forza Italia (FI) de Silvio Berlusconi, uma pequena ala democrata-cristã ou centrista, a Liga do Norte (LN) de Umberto Bossi e a Aliança Nacional (AN) de Gianfranco Fini – governou a Itália quatro vezes.” A Aliança Nacional foi, de resto, “o partido antecessor dos Irmãos da Itália de Meloni”.
Berlusconi tem uma visão revisionista do papel de Mussolini na história italiana. Acredita ter sido um dos “maiores estadistas” da Itália, essencialmente, “ditador benigno” que “fez coisas boas pela Itália”. Isto forneceu uma “contra-narrativa que contradizia a realidade das bases antifascistas” de Itália. O que, por sua vez, “foi explorado pela extrema-direita”, enquadra George Newth.
A Liga do Norte surgiu pela primeira vez como uma série de partidos que procuravam maior autonomia para as prósperas regiões do norte da Itália. E a Aliança Nacional foi “a mais recente face de uma tradição neofascista com raízes no Movimento Social Italiano (MSI) estabelecido por veteranos da República Social Italiana de Mussolini”, em 1946.
Ambos os partidos “ajudaram a trazer políticas reacionárias e de extrema-direita para o mainstream, como parceiros de coligação em administrações lideradas por Berlusconi”.
O equilíbrio de poder nesta aliança “mudou decisivamente entre 2013 e 2017”, quando Matteo Salvini assumiu as rédeas da Liga do Norte. Aos poucos, abandonou o regionalismo pelo nacionalismo e recorreu à extrema-direita, adotando o slogan “Italianos Primeiro”, “anteriormente usado pelo partido neofascista Casa Pound“. A Liga (agora renomeada) fez parceria com o Movimento Cinco Estrelas “para governar como o que foi eufemisticamente chamado de coligação ‘populista’ entre 2018 e 2019”.
Visões extremas embaladas como “senso comum”
Neste período assistiu-se, “entre outras políticas reacionárias, a um ‘decreto de segurança’ que apertou os regulamentos de imigração, limitou o direito de asilo e facilitou a expulsão de migrantes e a revogação da cidadania”. O decreto acabou por ser derrubado em 2020, mas naquela altura “serviu como uma vitória simbólica para Salvini”.
Em 2017, Salvini prometeu aos eleitores italianos uma “revolução do bom senso” – que viria rapidamente a tornar-se “central nas mensagens políticas do partido”. “A ideia era trazer a ideologia de extrema-direita para o mainstream, retratando políticas racistas e extremas como ideias ‘normais’ baseadas em pontos de vista partilhados por ‘italianos comuns’.”
Como muitos políticos populistas de extrema-direita, Salvini prosperou com a ideia de que estava a dizer em voz alta o que “toda a gente realmente pensava”. Afirmou estar a colocar “os italianos em primeiro lugar” – embora se referisse realmente “a italianos brancos, católicos e heterossexuais de famílias ‘tradicionais'”. Promoveu igualmente o encerramento de fronteiras e a limpeza de campos de migrantes.
“A imagem de senso comum de Salvini, embora profundamente enganosa, provou inicialmente ser uma tática eleitoral bem sucedida. Mas em 2019 começou a perder o controlo da narrativa, em grande parte graças a uma série de erros de cálculo”, lembra Newth.
A primeira foi a sua “malfadada decisão de derrubar o governo que ele próprio havia formado em coligação com o Movimento Cinco Estrelas, em 2018”. “Alimentado pela arrogância induzida por fortes números nas sondagens e na esperança de desencadear eleições, Salvini retirou o apoio ao governo, mas a sua aposta não resultou.” Em vez disso, “consignou o partido às bancadas da oposição”.
Meloni herda as táticas de Salvini
As perdas de Salvini foram no entanto “os ganhos de Meloni” e o equilíbrio de poder na direita política da Itália “afastou-se mais uma vez da Liga”. Com Salvini a passar os últimos dois anos a dedicar o seu apoio parlamentar ao governo, “Meloni conseguiu posicionar-se como tendo estado ‘sozinha na oposição’ – e, portanto, mais em contacto com ‘italianos verdadeiros’, aproveitando o sucesso de Salvini para trazer ideias reacionárias e de extrema-direita para o mainstream”.
Um elemento-chave da estratégia de “senso comum” de Salvini foi “minimizar a ameaça do fascismo e argumentar que pedir lei e ordem ou fronteiras mais fortes não é fascista“, criando “as condições perfeitas para os neofascistas prosperarem”. Meloni tem sido livre para afirmar que o seu partido se livrou do seu passado fascista, “mesmo quando defende visões obviamente de linha-dura”. “O que pode ser chamado de estratégia pós-fascista estava a desenrolar-se.”
“Meloni ilumina o público com afirmações fascistas enquanto alega que o fascismo já não existe. Aqueles que alertavam para que o fascismo estava a regressar eram ridicularizados como irracionais”, assinala George Newth. Tanto a Liga como os Irmãos da Itália implantaram slogans de campanha usados pela primeira vez na era fascista. Os Irmãos de Itália “mantiveram inclusive o logótipo da chama tricolor usado pelos seus antecessores”.
Meloni opõe-se ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, quer restringir significativamente o acesso ao aborto para lidar com a ‘emergência’ do declínio da taxa de natalidade na Itália e fez referências explícitas às supostas raízes ‘judaico-cristãs’ da Europa – claramente, defende George Newth – “um laivo islamofóbico há muito parte fundamental da ideologia de extrema-direita europeia”.
O racismo também é evidente numa descrição da imigração como uma invasão – manifestada “nos pedidos de bloqueio naval e no retrato de uma ‘migração indocumentada’ como estratégia da ONU”.
O sucesso de Meloni “pode chocar, mas não deve surpreender”. Meloni é “uma astuta operadora das redes sociais e uma estratega especializada”, embora o seu caminho tenha sido aberto por muitas figuras que vieram antes dela”. “O trabalho de Salvini para mudar a janela do que é mainstream na política fez de Meloni a política que ela é hoje”. Foi um processo que “levou anos e que se desenrolou diante dos nossos olhos”.
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