O que acontece numa criança agredida sexualmente ou levada a mentir para dizer que foi violada

“A mulher recusava sexo oral ao marido e ia acordar a filha de 11 anos para fazê-lo ao pai”, relata-nos a psicóloga Elsa Henriques, que traça o perfil do agressor sexual e os efeitos na criança agredida no curto e no longo prazo.

O que acontece numa criança agredida sexualmente ou levada a mentir para dizer que foi violada

Elsa Henriques, psicóloga clínica que no terreno desenvolve psicologia forense, atua perante casos de suspeita de abuso ou assédio sexual a crianças. Entre muitas das suas funções permanentes, acompanha agressores e vítimas e fornece os seus pareceres clínicos às autoridades em casos de alegados atos ou ambientes de abuso. A vasta e constante experiência de Elsa Henriques – que trabalha “como perita em formato de psicologia forense em avaliações solicitadas pelos tribunais” – permite-lhe explicar-nos que impactos tem na vítima uma de duas experiências possíveis: na primeira, quando a criança é assediada (ou mesmo agredida), por um progenitor e, na segunda, quando a criança é levada por um dos pais a mentir para acusar o outro de abuso.

Como nos explica a especialista clínica, que desenvolve grande parte da sua atividade no hospital distrital de Santarém e no hospital da CUF, na mesma cidade, “ambas as situações deixam marcas imediatas e no longo prazo”. Os dois cenários colocam-se sempre que uma denúncia chega às autoridades e é portanto aqui, a pedido dos investigadores, que psicólogos experimentados na área – como Elsa Henriques – intervêm: a criança foi de facto abusada ou está a mentir?

O que Elsa Henriques nos explica não é apenas o fruto da sua experiência. Para que não haja “margem para dúvidas” sobre os cenários que nos coloca, adverte-nos, socorre-se em muitos momentos do consenso académico vertido na obra especializada no assunto Sexualidade Infantil e Abusos Sexuais a Menores, de Marisalva Fernandes Fávero. A experiência da psicóloga que exerce na CUF, entre outras instituições, ajuda-nos a compreender o ato da agressão em todas as suas intensidades, o perfil e o modo como atua o agressor e as marcas perpetradas na vítima infantil, desde o momento em que é violentada até (em muitos casos) ao fim da vida. A psicóloga explica-nos também o que acontece na criança quando um dos pais desavindos usa a descendência para atingir o outro, levando-a a mentir sobre ter sido agredida sexualmente.

O que acontece numa criança quando sofre assédio sexual por parte do pai

Os efeitos a curto-prazo observados na criança perante o agressor são “ter nojo, desconfiança, medo, sentir hostilidade, tentar abandonar o lar e comportamento antissocial”, enumera Elsa Henriques. No caso de estarem separados – e de a criança estar com a mãe com visitas legalmente definidas ao pai –, a vítima “não vai querer estar com o pai”. A criança desenvolve também “sentimentos ambivalentes relativamente ao agressor”, que se traduzem, por exemplo, em expressões como “gosto dele porque é meu pai e vivemos coisas maravilhosas e odeio-o porque me fez isto”.

Na pré-adolescência, a vítima “manifesta confusão de sentimentos e considera que o meio não a protegeu ou que mereceu ser abusada”. O meio “pode muitas vezes ser a própria mãe”. A criança pode portanto desenvolver o sentimento de que “mãe não a protegeu e que mereceu ser abusada”. E questiona-se – “Não me protegeram”, “Por que é que aconteceu comigo e não com os meus amigos” ou “será que eu mereço isto”.

Dr.ª Elsa Henriques, psicóloga clínica
Crianças com dez, 11, 12 anos assediadas ou abusadas sexualmente adquirem muitas vezes “comportamentos delinquentes, tendência para roubos, agressividade contra companheiros, agressividade sexual e até interesse por consumo de álcool ou drogas” – explica Elsa Henriques, experiente psicóloga com vasto trabalho em psicologia forense – e podem inclusivamente iniciar-se na “prostituição infantil”

Na família, “as crianças tendem a dirigir a sua raiva contra o progenitor não abusador por este ter falhado na sua proteção”. No caso de incesto, enraivecem-se “contra a mãe, que não a protegeu, se o abusador tiver sido o pai”. E podem igualmente “culpar ambos os pais no caso de o abuso ter sido por parte de um irmão, de outro familiar ou de alguém próximo ou até fora da família”.

Dependendo das idades, as crianças vítimas de abuso sexual apresentam “diversos comportamentos sociais inadequados”. Por exemplo, “perturbações do comportamento, agressividade contra os companheiros e, até, agressividade sexual”. Este tipo de perturbações no caso de crianças mais crescidas, “por exemplo de crianças com dez, 11, 12 anos, transformam-se em comportamentos delinquentes, tendência para roubos, agressividade contra companheiros, agressividade sexual e até o interesse por consumo de álcool ou drogas”. Na adolescência mais tardia, “a criança pode ter ideias de abandonar o lar”.

Além dos efeitos contra quem abusou ou não a protegeu de ser abusada, verificam-se também “efeitos contra si própria”, que passam por “vergonha, culpa, estigmatização e baixa autoestima”. A culpa “surge na própria vítima ou por atribuição do agressor ou da própria família” e “debilita a visão de si mesma”. O fato de “permitir a continuidade também leva a vítima a sentir culpa”. Tende a apresentar “sintomas de depressão – isolamento social, por exemplo –, choro, querer estar no quarto, ansiedade, autoconceito pobre – ou seja, ‘o que é que eu sou perante mim própria e o que é que os outros pensam acerca de mim’ –, baixa eficácia social (lá está: o isolamento) e relação de intimidade frustrante para com ela própria”.

Ainda que “apenas o agressor possa ser considerado culpado, na visão da criança ela também poderá considerar-se culpada”. Todo este quadro instável ocasiona “situação de stress pós-traumático“, com uma série de reações “físicas, psicológicas e comportamentais”. Pode “inclusivamente desencadear perturbações do comportamento alimentar”. Neste caso, “a criança passa a comer de uma forma exagerada por forma a ficar obesa e achando que isso a torna desinteressante aos olhos de qualquer potencial agressor sexual, independentemente de ser o pai ou outro qualquer que venha a surgir”, explica.

Outro dos efeitos na criança abusada pode ser “o excesso de curiosidade em relação à sexualidade”. Questiona-se não só sobre o que aconteceu como também “sobre outras coisas que possam haver” na sexualidade e levar – “sim”, confirma Elsa Henriques – a um comportamento obsessivo. “Sim, pode. De tal forma que poderá ter precocidade de comportamentos sexuais e até vir a desencadear prostituição infantil.”

Outros efeitos serão, para lá das perturbações alimentares, “medo de dormir sozinha”, “sono instável – com pesadelos –, problemas escolares muito acentuados por falta de concentração e até abandono da escola e encoprese [incontinência fecal], que é fazer cocó durante a noite, na cama”. Quando o pai é o abusador, “a filha desenvolve para a com a mãe raiva e ódio” – “lá está: porque não a protegeu”.

Efeitos do abuso sexual na criança em longo prazo

Os efeitos de longo prazo consideram-se “a partir de dois anos” após o fim do abuso sexual. Existe, subsiste ou surgem “ansiedade, depressão, baixa autoestima, problemas sociais e comportamentais, suicídio ou tentativas de suicídio, disfunções sexuais, problemas de comunicação interpessoal – daí o isolamento –, o fracasso escolar tremendo, fuga do lar – se for o caso de estar em casa –, gravidez não desejada – porque entretanto surge a menstruação –, doenças sexualmente transmissíveis, medo de contactos sexuais”. Surge ainda uma “dissociação entre mente e corpo”, isto é: ‘eu não penso isto, mas o meu corpo puxa-me para aquilo'”. Verifica-se “derrotismo da criança, depois adolescente”, e pode haver episódios de “autoflagelação ou automutilação” – “cortar-se ou queimar-se”.

As “distorções cognitivas” surgem também nesta fase, “tanto a nível do pensamento como das alterações emocionais”. Aparecem “perturbações relacionais, ‘evitações’ relacionais e uma ideia acerca de si própria completamente debilitada”. No caso dos rapazes, – embora “não esteja completamente provado cientificamente de forma consistente” –, “poderão vir a ter comportamentos de homossexualidade sem que seja esta a sua orientação legítima”, simplesmente porque tendo sido abusado por um homem pode “vir a ter esse comportamento”.

Todas as crianças independentemente da idade “estão em risco de serem vítimas” de assédio ou abuso sexual, confirma Elsa Henriques, acrescentando que o risco é “maioritariamente no sexo feminino”. Nas pré-adolescentes, o enfoque é nas que “apresentem ainda corpo infantil ao mesmo tempo que já apresentam sinais de maturidade sexual”. Os abusos a crianças “diminuem aí a partir dos 13 ou 14 anos” porque podem “oferecer maior resistência ao agressor”. No outro extremo, o das idades mais precoces, “os abusos são mais difíceis de serem recordados”. Quanto menor a idade em que é abusada “menor será a probabilidade de a vítima recordar-se desses episódios”, explica. As que tenham “dois ou três anos é muito raramente virão a aperceber-se disso”, independentemente do grau de violência perpetrada, havendo até casos “de crianças abusadas com meses de idade – e inclusivamente algumas morrem, tal não é a potência da agressividade”.

No longo prazo, verifica-se ainda a hipótese de o “agredido vir a tornar-se no agressor”. “Ser agressor porque se foi agredido na criança resulta da criação de uma espécie de um padrão cíclico de abuso para libertar a raiva produzida pela sua vitimização ou de retomar o poder que a agressão lhe retirou.” Por outro lado, como a criança “aprende o que os outros fazem com ela”, a vítima “tende a repetir o acontecimento porque fica fixada numa fase do desenvolvimento do Eu [dela], distorce a realidade e identifica-se com o agressor”. É frequente que alguém que tenha sido agredido sexualmente “venha a tornar-se agressor”. “Ou não, mas é uma potencial causa e um fator a detetar quando se faz uma avaliação psicológica, nomeadamente em perícia de agressores que esta situação se venha a verificar – ‘se eu fui agredido, por que é que não hei de agredir; se calhar isto até é uma coisa normal’, principalmente nos contextos familiares.”

O perfil e as estratégias do agressor sexual de crianças

O conjunto de estratégias mais utilizadas pelo agressor e que lhe caracterizam o perfil é “a coerção, traduzida em pressão, engano, mentira, força física e surpresa”. “São estas as estratégias mais utilizadas para conseguir realizar o abuso. O poder também pode ser utilizado – tal como a idade, o género, a raça, a cultura, o tamanho e a força física do agressor. Pode ser alguém da família, e muitas vezes oferece experiências positivas à vítima” – materializadas “naquela situação de dar prendas, oferecer dinheiro, brincar, alterar o tom de voz”.

O agressor, inclusivamente, “faz ameaças à vítima” e “utiliza práticas sexuais que não deixam danos físicos”, muitas vezes para escapar a “eventuais descobertas numa fase inicial, enquanto está a aliciar a criança, induz a criança a guardar segredo – isto é típico”. “A criança não denuncia o abuso intra-familiar porque tem medo de perder os pais ou os irmãos. O próprio agressor, se for o pai, ameaça – ‘se tu dizes, ficas sem a mãe e sem os manos’. A criança “introduz isto e cala-se”.

Por regra, a maioria dos agressores é “masculina” e a idade “varia entre os 31 e os 50 anos”, mas “é muito variável e não pode ser padronizada”. “Há agressores sexuais adolescentes tardios, dos seus 18 a 20 anos, e há inclusivamente pedófilos com idades acima dos 50 ou 60 anos.” As estratégias para agredir são exatamente aquelas: “mudam o tom de voz (para aliciar) para convencer a criança a participar na experiência”. Ao adocicar o comportamento consegue “atrair, seduzir e manipular” a vítima. Normalmente, “exibe os genitais à criança, pede-lhe muitas vezes para que o masturbe – ensina-a – para depois propor masturbação mútua, incita-a a praticar sexo oral e a seguir coito vaginal, anal e outras atividades e carícias sexuais”. “Muitas vezes até induz a criança a estar com ele a assistir a vídeos de sexualidade infantil com adultos.”

A formação académica altera o tipo de ação do agressor, embora o pedófilo “tanto pode ser analfabeto ou iletrado como ter um nível académico muito elevado – o que acontece muito frequentemente”. Neste caso, “a parte cognitiva, o quociente intelectual, potencia a racionalização, a pessoa é congruente com aquilo que quer, tem uma ideia consistente do que quer fazer e é consequente – e sabe –, mas o poder desta sexualidade absorve-o em tal ordem que o cega, levando-o a desenvolver estratégias em como nunca será consequente porque terá formas racionais de escapar”.

Imaginemos, por exemplo, “um juiz, um professor catedrático ou um advogado pode desenvolver estratégias em como jamais alguém – pelo seu discurso – vai achar que ele fez uma coisa destas”. Investe-se da própria mentira, tornando-se na mentira para ser mais convincente – “Completamente”, confirma Elsa Henriques. “É o lobo vestido de carneiro. Como é que um advogado iria alguma vez abusar de um filho? Nunca. Nem de outras crianças… Jamais. Até porque está por dentro da legislação e saberia quais seriam as consequências.

“E é precisamente aí que desenvolve estratégias muito bem esquematizadas do ponto de vista psicopático [alteração de personalidade grave] para colmatar qualquer eventualidade. Do género: ‘Eu não fiz nada, eu jamais o poderia ter feito’. E então projeta a culpa em outras pessoas, que ‘nem sabe à partida quem são’. ‘Garantidamente não foi ele’ – na cabeça dele, claro, por que ele próprio se auto-convence de que não foi ele para poder mais logicamente convencer os outros de que jamais poderia ter sido ele.

“A mãe acordava a filha para ir fazer sexo oral ao pai”

As agressões têm diversas fases. A de “atração, a de interação sexual e a do segredo”, que é “extremamente importante e perturbadora para a criança”. “A criança tem de guardar segredo, sob coação, para não deixar de ter os privilégios familiares – ou seja, de que, se o agressor for o pai, deixa de ter a mãe, deixa de ter os irmãos. Depois, há a fase da revelação e da supressão do abuso e a criança pode sentir-se culpada.”

As vítimas, quando crianças, “sentem-se culpadas por pensarem ter sido elas quem desencadeou isto”. Quando, na verdade, “foi sempre o adulto quem iniciou a situação”. Estes adultos são, “não raras vezes”, “sádicos, raivosos e poderosos”, no sentido em que “o poder está relacionado com influências sociais”. “Pode ser um político, por exemplo, de quem não se desconfia por ter imagem de integridade para desempenhar determinados cargos.”

Os pedófilos não têm normalmente “orientação sexual exclusiva dirigida às crianças”, mas “obtêm do contacto com elas elevado prazer sexual”. “Pedófilo assume-se criança, como tendo a idade da criança”. “Pessoas que se relacionam sexualmente com adultos e que cometem abusos sexuais a menores em determinadas circunstâncias podem acontecer quando há conflitos matrimoniais, quando têm uma autoestima pobre, quando são insatisfeitos sexualmente e podem até ser consumidores de álcool ou drogas.”

Para entendermos o ponto de perversidade a que muitas crianças são submetidas, Elsa Henriques relata-nos um dos muitos casos que acompanhou. “Trata-se de um casal em que a mulher se recusava a praticar sexo oral ao marido e então tinham um relacionamento sem essa prática. Ela a seguir ia acordar a filha de 11 anos para fazer sexo oral ao pai.” Nestes casos, os agressores “buscam satisfação e compensação pela angústia ocasionada por diversos problemas e desfrutam de poder sobre a criança”.

“Têm o prazer sádico do poder sobre as crianças e muitas vezes, quando obtêm das crianças satisfação sexual que não obtêm do adulto com quem têm uma relação dita eventualmente normal a nível da intimidade sexual, e depois utilizam isso sobre o companheiro: ‘É preciso existir a criança para lhe dar a satisfação sexual porque o adulto não é capaz lhe dar para satisfazê-lo’. Trata-se também de um tipo de humilhação e de intimidação”, explica, para fechar o abuso entre quatro paredes e que funcionará também como passa-culpas. “Sim. Também”, concorda a psicóloga. “Portanto, dizem ‘Eu faço isto com o nosso filho ou com a nossa filha, e tu sabes, porque tu não me dás essa satisfação’. “Muitas vezes, a própria mãe não sabe. Mas há muitos casos em que as mães sabem e não denunciam na altura em que deveriam.”

Do vingativo ao companheiro ideal, as estratégias do agressor

A viagem até à agressão sexual tem sensivelmente um percurso-tipo, que Elsa Henriques descreve. “Aproximam-se da criança, brincam mais com ela, oferecem dinheiro, brinquedos, tabaco, droga, fazem ofertas com tratamento especial à criança e sob ameaça de abandoná-la e de agredi-la se ela não participar nestas vontades que o agressor quer satisfazer.” Acrescenta que “a coerção é por excelência um elemento inerente ao abuso quando o agressor procura na criança uma compensação para as frustrações da sua relação com outro adulto.” A psicóloga clínica admite “a dificuldade de aplicar uma tipologia concreta”, uma vez que os agressores “apresentam dificilmente um tipo único” de abusador que, no entanto, estão de certa forma tipificados:

– “O vingativo, que inflige dor nas partes sexuais ou emocional das vítimas. Tem o prazer mórbido de causar dores na criança, sofrimento físico ou emocional;
– O aproveitador, que se serve das crianças para fazer o que lhe dá vontade sem se preocupar se os seus atos afetam as crianças. O sexo é só para o agressor, o que poderá ser uma violação infantil, um ato de agressividade profunda;
– O controlador, que negoceia com favores no sentido de controlá-las;
– O conquistador, que manipula as vítimas para que elas se envolvam sexualmente com ele (o poder de sedução de manipulação utilizados sobre a criança);
– O companheiro ou igual, que se reconhece a si mesmo como igual às vítimas e relaciona-se sexualmente com elas como se fosse somente uma de tantas coisas divertidas que pode fazer com as crianças (ou seja, parece um débil mental, em que é adulto mas caracteriza-se como sendo criança e utiliza aquela prática sexual como se fosse uma brincadeira comum, quando na verdade sabe que está a fazer mal à criança);
– O amante, que sugere estar apaixonado pela vítima e muitas vezes acredita mesmo que a criança lhe está a corresponder (como se alguma vez uma criança pudesse estar a corresponder, numa atividade destas, em que está nitidamente a ser coagida, seduzida e manipulada);
– O companheiro ideal, em que se vê a si mesmo como parte da criança que agride (protege-se a si mesmo, no seu objeto de amor, que é, neste caso, a criança), e que é também chamado de narcisista (tem uma baixa de auto-estima que é uma coisa impressionante e vai-se favorecer da auto-estima para provocar medo e infligir um contexto de dependência na criança [e dele na própria criança], onde depois há esta idealização de si próprio onde ele e a criança são uma espécie de fusão, normalizando o comportamento, vendo-a como uma coisa completamente normal).

E quando um progenitor inventa uma agressão e utiliza a criança para atingir o outro progenitor?

As acusações de assédio ou agressão a menores nem sempre são verdadeiras. Acontecem normalmente quando um dos pais quer atingir o outro, de quem se separou, usando a criança para atingir esse fim. A criança mente, consciente ou inconscientemente, depois de manipulada. Neste caso, não deixa também de ser vítima. E, neste cenário, “sente-se revoltada e tremendamente confusa” porque à partida “não percebe o que está a acontecer”.

“Dou um exemplo. Tive o caso de uma mãe que, para atingir o marido que queria divorciar-se dela – já que ela só o utilizava para fins económicos, como se ele fosse a entidade bancária dela –, levou a criança às urgências e afirmou que a menina tinha sido abusada sexualmente pelo pai. Depois de observação ginecológica, provou-se que não tinha de facto sido abusada pelo pai. “Neste caso, a criança ficou com sentimentos de ambivalência relativamente à mãe e ao pai – mas mais relativamente à mãe. Tratou-se de um episódio de agressividade suprema da mãe para com a criança e para com o ex-companheiro. Nestas circunstâncias, a mãe está a agredir a própria filha e o próprio pai da criança.”

O pai terá, “como adulto, mecanismos de defesa para se abstrair e desenvencilhar disto, se bem que fique perturbado”. Com a criança, evidentemente, não se passa o mesmo. “Ela tinha uma relação privilegiada com o pai, em termos de afetos e de proteção, que não tinha com a mãe. A miúda tinha na altura nove anos e a situação provocou-lhe altos constrangimentos (por causa de ter de ser observada por um ginecologista) e mais tarde um sentimento de revolta exagerado contra a mãe porque sentiu-se um objeto utilizado pela mãe para agredir o pai ao máximo. A criança sabia inclusive que a mãe tinha outros companheiros e que o pai nunca as teve.”

Em situações como a descrita, o aconselhável, concorda Elsa Henriques, o pai deverá de imediato pedir a guarda total da criança para afastá-la da mãe. “Sim, claro. O pai deve fazer imediatamente uma denúncia perante as autoridades competentes de que a mãe usou a criança desta forma. Depois, o próprio pai implicar-se em que a criança seja observada legalmente para se assumir completamente inocente neste processo. E finalmente pedir a guarda total, da filha, sim, para afastá-la o máximo da mãe. As autoridades depois tomarão a devida decisão relativamente a estas circunstâncias.”

O caso relatado terminou com a retirada da criança à mãe, que só passou a receber a filha em casa aos fins de semana depois de algum tempo, já legalmente autorizada. A menina passou a ter acompanhamento psicológico em face do sucedido. Sempre que se detetem ou se suspeite de casos de abuso sexual ou de utilização da criança em disputas entre os pais, os clínicos devem por obrigação alertar as autoridades. Os pais devem igualmente fazê-lo, passando ambos os processos a decorrer paralelamente na Justiça.

Texto: Luís Martins

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