Ucrânia: um país ferido por oito anos de crise

As preocupações e os substanciais gastos em segurança estão a drenar os recursos da Ucrânia e a cercear a capacidade do estado de investir em serviços públicos e infraestrutura.

Ucrânia: um país ferido por oito anos de crise

A guerra russo-ucraniana começou em 2014, depois de manifestantes pró-europeus terem derrubado o governo do presidente Victor Yanukovych, apoiado por Moscovo, provocando a rápida escalada de uma crise que resultou na anexação da Crimeia pela Rússia, em março de 2014, e no estabelecimento de dois estados protegidos pela Rússia no leste da Ucrânia – as chamadas repúblicas populares de Donetsk e de Luhansk (DPR, LPR). Quando o território foi consolidado com a ajuda russa, em fevereiro de 2015, cerca de 10 mil pessoas perderam a vida como consequência direta dos combates. Desde então, o número de vítimas subiu para mais de 13 mil, incluindo quase 300 pessoas a bordo do voo MH17 da Malaysia Airlines. Nos últimos sete anos, esta guerra no território da Ucrânia continuou. O conflito armado é travado entre as forças armadas da Ucrânia e as forças do DPR e LPR apoiados pela Rússia ao longo da linha de cessar-fogo de 2015, monitorizada pela Missão de Observação Especial da OSCE na Ucrânia.

Ucrânia: um país ferido por oito anos de crise
Guerra custa à Ucrânia 1% do PIB: 878 milhões de euros [Foto: Daniel Stuben]
A dimensão económica da guerra na Ucrânia tem como principal custo a perda de status de país de trânsito do gás russo para a UE, custando ao país cerca de 1% do PIB – cerca de 878 milhões de euros – ao mesmo tempo em que cria problemas de fornecimento de gás. A dimensão diplomática da guerra está intimamente ligada com as tensões não resolvidas entre Moscovo e o Ocidente, dirimidas nas arenas internacionais, como a Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) de 57 membros e o Formato da Normandia, que reúne Ucrânia, Rússia, França e Alemanha. Por enquanto, isto tem impedido uma escalada maciça da guerra, mas, por outro lado, uma enorme crise humanitária.

A situação ao longo da linha de contacto no leste da Ucrânia permanece, no entanto, altamente volátil. Além disso, a Rússia aumentou gradualmente a pressão sobre a Ucrânia e os seus aliados ocidentais. Houve constantes violações do cessar-fogo, pressão económica, ciberataques, alguns já em 2014, guerra de informação – e agora, mais uma vez, a ameaça de uma invasão em grande escala, dependente das garantias ocidentais de uma “zona de influência” russa no espaço pós-soviético.

Ucrânia além da Rússia e do oeste

Ucrânia: um país ferido por oito anos de crise
Uma invasão russa é agora não apenas possível, mas cada vez mais provável [Foto: Vasyl Tymoshchuk]
O que muitas vezes passa despercebido na cobertura da crise ucraniana é o custo cumulativo que ela causou ao Estado e à sociedade ucraniana, que que colocou a Ucrânia numa posição geopolítica onde o país permanece na mira de grandes potências rivais, mas com ação própria muito limitada. estes fatores são, em grande medida, significativamente prejudiciais para os esforços de reforma na Ucrânia. O progresso na redução da corrupção, o fortalecimento do estado de direito, a descentralização e outras reformas de governança foram suspensos ou até mesmo revertidos perante a invasão russa, que agora não é apenas possível, mas vista como cada vez mais provável.

As contínuas preocupações de segurança da Ucrânia nos últimos oito anos esgotaram as instituições estatais e diminuíram ainda mais a sua eficácia. Além disso, os gastos militares aumentaram de forma constante de 1,4 mil milhões de euros em 2013 (1,6% do PIB) para 3,6 mil milhões de euros em 2020 (4% do PIB). Os gastos para compras estão programados para aumentarem de 739 milhões de euros no ano passado para pouco mais de 886 milhões em 2022, o que diminuiu ainda mais a capacidade do estado para investir em serviços públicos e em infraestruturas. O que, por sua vez, também significa que a atratividade do país para o investimento estrangeiro está a regredir acentuadamente.

Ucrânia: um país ferido por oito anos de crise
A sociedade ucraniana e os parceiros ocidentais de Kiev tornaram-se mais tolerantes com as restrições aos direitos humanos [Foto: Gerhard Reus]
Depois das quedas da crise financeira de 2008 e o início da crise atual, no final de 2013, o investimento estrangeiro direto em 2019 foi de pouco mais de 5,1 mil milhões de euros, em comparação com os 7,2 mil milhões de euros em 2012 e os 9,4 mil milhões de euros em 2008. Embora o país tenha tido um crescimento económico estável desde 2016, o PIB em 2020 – 137 mil milhões de euros – mantinha-se muito abaixo da alta pós-independência de 2013 – 167 mil milhões de euros – e caiu ainda mais 4% em 2020. A pandemia da covid-19 é parte da justificação, mas, de acordo com as previsões económicas globais do Banco Mundial de janeiro de 2022, as “perspetivas de crescimento de longo prazo da Ucrânia são limitadas pelo lento impulso da reforma, que tem impedido a concorrência e o desenvolvimento do setor privado”.

A sociedade ucraniana e os parceiros ocidentais de Kiev também se tornaram mais tolerantes com as restrições aos direitos humanos. Estas podem ser uma resposta compreensível, embora míope, à aguda ameaça externa que o país enfrenta. Mas não como evitar prejudicar o governo tanto no país quanto no exterior e podem até vir a afetar a assistência da UE. É provável que este efeito estique ainda mais a corda das instituições ucranianas, potencialmente até ao ponto de ruptura.

Crise de legitimidade e identidade

Ucrânia: um país ferido por oito anos de crise
Um terço dos ucranianos dizem-se prontos para oferecer resistência armada à Rússia no caso de invasão [Foto: Max Kukurudziak]
Em resposta à última escalada da crise, a Ucrânia adotou a doutrina da “resistência nacional“, segundo a qual todos os homens e mulheres com menos de 60 anos estão sujeitos à mobilização para o serviço militar. Enquanto as sondagens de opinião mostram que 33% dos ucranianos estão prontos para oferecer resistência armada à Rússia no caso de invasão, 21% oferecerão resistência não-violenta, mas 14,3% prefeririam migrar para um local seguro dentro da Ucrânia e 9,3% deixariam o país no caso de invasão russa. Quase um em cada cinco ucranianos (18,6%) não resistirá à agressão russa. Só em 2021, 600 mil pessoas (cerca de 1,5% da população) emigraram – o maior número anual desde a independência. Trata-se de um claro indicativo da crise demográfica do país e uma indiscutível ilustração da contínua crise de legitimidade e identidade do Estado ucraniano.

Necessidade de instituições resilientes

A crise da Ucrânia não é portanto apenas militar ou geopolítica. Estes fatores estão, naturalmente, na vanguarda das mentes dos formuladores de políticas e devem ser abordados com rapidez e determinação. Mas além destas crises – e intimamente ligadas a elas –, também houve uma crise doméstica que requer atenção sustentada. Sem instituições resilientes, a Ucrânia permanecerá para sempre dependente de apoio externo e vulnerável a mudanças geopolíticas. A situação interna da Ucrânia é uma contribuição tão importante para a segurança europeia e global no longo prazo quanto o imperativo imediato de dissuadir a agressão russa.

Luís Martins

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