Visão errada de Putin da “Ucrânia russa” não difere do que Biden quis fazer no Iraque
Kerry Goettlich, professor de Segurança Internacional do Departamento de Política e Relações Internacionais, explica que a visão de Putin sobre fronteiras é errada e que é a mesma que Biden quis para o Iraque.
Nas negociações em andamento entre Ucrânia e Rússia após a invasão, Vladimir Putin parece ter como objetivo, no mínimo, “manter a Crimeia na Rússia e garantir o reconhecimento das repúblicas populares de Donetsk e Luhansk”, analisa Kerry Goettlich, professor de Segurança Internacional do Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de Reading, no Reino Unido. Estes estados separatistas reivindicam muito mais território do que o que controlam agora e “reconhecê-los seria uma mudança decisiva nas fronteiras da Ucrânia”.
Um dos muitos aspetos da invasão é o quanto as histórias do desenho das fronteiras parecem ser relevantes. Dias antes da invação, o presidente russo afirmou que “a Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia comunista”. Para Putin, Lenine transferiu “para as unidades administrativas recém-formadas, muitas vezes arbitrariamente – as repúblicas sindicais – vastos territórios que nada tinham a ver com eles”.
“Como acontece com qualquer afirmação de que certas fronteiras são arbitrárias, não é óbvio o que exatamente significam as palavras de Putin”, ao usar o argumento de que o problema é onde acaba e começa um país. De facto, Goettlich considera que “as fronteiras terrestres podem, de alguma forma, ser consideradas arbitrárias, se pensarmos na forma como se espera que os estados modernos tenham linhas precisas e fixas como fronteiras”. Linhas precisas e traços que “não são encontrados na natureza, mas desenhados por pessoas”.
O mundo nem sempre, no entanto, foi dividido desta forma. Historicamente, as sociedades “tinham várias soluções para definir o território”. “Em muitas sociedades, da Índia pré-colonial à Europa moderna, os territórios podiam ser trocados simplesmente reivindicando-os”. A localização dos limites desses territórios, porém, “dependia muitas vezes das memórias dos habitantes, e não dos mapas oficiais”. Medição, marcação e mapeamento sistemáticos de limites políticos para fixá-los como linhas precisas “começou no século XVII e foi aplicado globalmente apenas no final do século XIX”, situa Goettlich.
Se todas as fronteiras são de alguma forma feitas pelo homem, como devemos então abordar a afirmação de Putin de que as fronteiras da Ucrânia são arbitrárias? “Um bom ponto de comparação é a Conferência de Paz de Paris de 1919-1920“, diz o professor especialista em Segurança Nacional. A conferência “foi o encontro das potências vitoriosas da I Guerra Mundial para determinar a ordem do pós-guerra – que ocorreu no momento em que a Rússia soviética estava em formação”.
Com isto, “era amplamente esperado que os estados-nação surgissem em toda a Europa, criando minorias étnicas mínimas”. Todavia, “áreas de grande maioria de língua germânica foram incorporadas à Checoslováquia e à Itália, em parte porque se pensava que as fronteiras das montanhas traziam segurança”. “O mundo descobriu o quanto isso estava errado quando Hitler anexou grande parte da fronteira montanhosa ao redor da Checoslováquia – os Sudetos – em 1938, sem disparar um tiro”.
A União Soviética não foi convidada para a Conferência de Paz de Paris, “mas a lógica por trás das fronteiras traçadas entre as suas repúblicas fundadoras era notavelmente semelhante”. “Ambos foram geralmente baseados em dados demográficos, análises económicas e geográficas e unidades administrativas anteriores. Por este padrão, a fronteira Rússia-Ucrânia não era de modo algum particularmente arbitrária.”
O Comité Executivo Central de Toda a Rússia criou o amplo esboço da fronteira Ucrânia-Rússia em 1919, incluindo na Ucrânia, aproximadamente, as antigas províncias imperiais russas de Volhynia, Kiev, Chernigov, Kharkov e Ekaterinoslav. Baseou a decisão “no censo russo de 1897, onde cada distrito dessas províncias mostra uma maioria de ‘malorussos’ (pequenos russos – ou ucranianos)”.
Se os dados demográficos deram a alguém motivos para reclamar, esse alguém “deveria ter sido a Ucrânia”. “De fato, os delegados ucranianos do Comité Executivo Central também pediram em 1924 as províncias de Voronezh e Kursk, com base na sua significativa população ucraniana.” O pedido foi negado.
As fronteiras coloniais “arbitrárias”
Outro aspeto da ideologia de Putin é que ela “descarta a ideia da Ucrânia como parte do que ele chamou de ‘a chamada herança colonial do Império Russo'”. “Afirma, com efeito, que a memória histórica da Ucrânia é seletiva. Apaga os laços históricos naturais com a Rússia, mas ainda é perfeitamente capaz de recordar as fronteiras que lhe foram impostas pela Rússia como potência colonial”, equilibra Goettlich.
Putin está a dar corpo a “uma nova reviravolta numa velha narrativa”: a de que “as fronteiras herdadas dos tempos coloniais são suspeitas e devem ser abertas à revisão”. O colonialismo europeu impôs fronteiras em grande parte do mundo, particularmente na África e na Ásia. De acordo com essa narrativa, defende Goettlich, “esses limites são problemáticos, porque foram vagamente delimitados ou não davam atenção aos limites anteriores das comunidades étnicas”.
O problema deste sistema é que “simplesmente ter uma história colonial não torna algumas fronteiras mais ou menos artificiais do que outras”. “Os Estados-nação podem ser igualmente artificiais“. As fronteiras modernas, “fixas e precisas, foram sistematicamente utilizadas pela primeira vez num contexto colonial – as treze colónias da América do Norte britânica”, exemplifica, apontado ainda o pormenor de “isto aconteceu muito antes de tais fronteiras se tornarem comuns na Europa“.
E se foi o colonialismo que trouxe fundou as fronteiras fixas e precisas para a maior parte do mundo, “corrigir o legado colonial envolveria erradicar todas as fronteiras fixas e precisas – não simplesmente reorganizá-las”. “É improvável que isso aconteça”, diz.
A ligação entre esta problemática e a explicação de Putin para as recentes ações militares da Rússia na Ucrânia explica-se, “em última análise, com as tentativas de corrigir as fronteiras ‘coloniais’ que tendem a fazer pouco além de recriar uma nova versão do imperialismo” – “exatamente o que Putin deixou claro na sua visão imperial do discurso pré-invasão”.
A visão de Putin não é a única proposta de correção de fronteiras coloniais para sair de uma potência imperial. Uma série de propostas para melhorar as fronteiras Sykes-Picot do Médio Oriente, por exemplo, surgiram nos EUA depois de 2003. “Em 2006, o então senador Joe Biden sugeriu uma divisão federal do Iraque ao longo de divisões sectárias, mantendo um governo central enfraquecido”.
Na altura, os críticos alegaram que os EUA não eram melhores do que as antigas potências coloniais, se se limitassem “simplesmente às suas políticas de dividir a região”. “A diferença é que Putin usou abertamente esta narrativa histórica como pretexto para a invasão da Ucrânia”, compara o professor de Segurança Internacional do Departamento de Política e Relações Internacionais Kerry Goettlich.
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