Testemunho de enfermeira sobre a eutanásia torna-se viral
«Aqui ando, a discutir o direito de morrer com gente que nunca viu sofrimento sem ser em filmes e que acha que com cuidados paliativos tudo se resolve.»
«A enfermeira Carmen Ferreira recorreu ao Facebook para partilhar um texto sobre a eutanásia. «Aqui ando, a discutir o direito de morrer com gente que nunca viu sofrimento sem ser em filmes e que acha que com cuidados paliativos tudo se resolve», pode ler-se. Em poucos dias as suas palavras tornaram-se virais. Mais de 250 comentários foram deixados na publicação que mereceu mais de cinco mil partilhas.
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Texto de Carmen Garcia na íntegra:
Sou enfermeira. Há dez anos que todos os dias convivo com a dor, a morte e o sofrimento. Sei exatamente a que cheira a miséria, conheço de cor o cheiro ácido das melenas e continuo a arrepiar-me com o cheiro putrefacto de algumas úlceras de pressão.
Ainda era estudante, do último ano da licenciatura, quando, em contexto de paliativos domiciliários, vomitei no quarto de uma doente. Porra, tudo ali gritava morte. Aquele cheiro ainda hoje me assombra. A merda, a bílis, o exsudado e os tecidos mortos das feridas. Não aguentei.
Mas depois aqui ando, a discutir o direito de morrer com gente que nunca viu sofrimento sem ser em filmes e que acha que com cuidados paliativos tudo se resolve. Como se os melhores paliativos do mundo mudassem o facto de alguém estar preso a uma cama, a comer por uma sonda, a urinar por outra, a sujar fraldas atrás de fraldas e a criar escaras que, sim, às vezes são inevitáveis. Como se os paliativos mudassem a realidade de quem tem que respirar 16h por dia, através de um buraco que os médicos lhe abriram na garganta, com a ajuda de um ventilador.
«É uma questão de não querer, de não aceitar, viver assim»
Não é uma questão de não ter dores, de ter uma linda vista para o rio ou a família por perto. É uma questão de não querer, de não aceitar, viver assim.
Atrás das secretárias ou dos ecrãs de computador, lá onde não chega o cheiro da morte e onde não se ouvem os gritos das dores que a morfina não resolve, é fácil opinar. É fácil falar bonito sobre as escolhas dos outros quando temos umas pernas que nos obedecem, quando a incontinência para nós é apenas uma palavra usada nos anúncio das fraldas e quando a pior dor que já sentimos se resolveu com tramal.
Difícil é estar lá, dar a mão a essas pessoas e dizer-lhes que, mesmo contra a sua vontade, terão que continuar a sofrer. Porque alguém decidiu por elas sobre a sua própria vida. Porque alguém decretou que não estão capazes de decidir por si mesmas ainda que as suas faculdades cognitivas estejam intactas.
É, eu também tinha opiniões muito romanceadas. Mas acho que as vomitei todas em Fernão Ferro, na casa da doente de 41 anos que apodrecia numa cama e que repetia incessantemente duas palavras: «Deixem-me morrer.»
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