«Encharcar os jornalistas com ações judiciais é bullying», diz Jónatas Machado
Indemnizações milionárias podem ser “letais” para as empresas que empregam jornalistas e “lesivas da liberdade de expressão”, alerta Jónatas Machado, professor de Direito Constitucional autor do livro Curso de Direito da Comunicação Social.
“Uma maneira de os grandes interesses ou poderes se defenderem do escrutínio às vezes já nem é pedir indemnizações. É pôr ações. É encharcar os jornalistas de ações. É uma forma de assédio, de bullying”, adverte Jónatas Machado, professor de Direito Constitucional autor do livro Curso de Direito da Comunicação Social. Por isso, diagnostica as “indemnizações milionárias” como a arma dos poderosos contra o livre exercício do Jornalismo. “Indemnizações milionárias podem ser letais para as empresas que empregam jornalistas e lesivas da liberdade de expressão, alerta.
Onde fica a fronteira entre liberdade de expressão e direito à vida privada?
Em primeiro lugar, devemos ter presente que a liberdade de expressão é da própria essência da democracia. Há um sub-princípio do princípio do estado de direito democrático que é no fundo o princípio da democracia comunicativa.
A discussão dos assuntos de interesse público.
Sim. Sobre todas as políticas e os políticos e realmente todas as formas de poder social que possam afetar uma sociedade.
Vários poderes afetam a sociedade.
De facto, não somos afetados apenas pelo poder político – pode ser económico, religioso, desportivo, científico.
Ou conjugados…
Muitas vezes, até, o cruzamento de todos esses poderes, sim. Há muitas relações entre economia e política, desporto e política, religião e política. Há muita promiscuidade e, portanto, tudo isso deve ser objeto de discussão pública permanente.
Escrutínio.
Escrutínio permanente. E é obvio que nesse contexto os direitos de personalidade são também importantes. Fazem parte também da estrutura de uma sociedade aberta, democrática, assente nos direitos fundamentais. Mas no fundo eles têm de ser devidamente ponderados, o direito ao bom nome, à reputação…
Bom nome e reputação podem não ser coincidentes.
Bom, o direito à reputação não pode proteger pseudo-reputações. Não pode servir para impedir o escrutínio sobre questões de interesse público.
E quanto à privacidade?
A mesma coisa. O direito à privacidade não pode impedir o escrutínio de dimensões, às vezes, da vida pessoal e até da íntima, que pode
ter relevo público.
Em que aspectos concretos?
Quando, por exemplo, qualquer tipo de práticas pessoais ou até íntimas pode, de alguma forma, condicionar depois o desempenho público. Assim como há uma íntima relação entre os vários poderes que muitas vezes estabelecem entre si relações de promiscuidade e, às vezes, apostando na opacidade, também há a interpenetração entre o dinheiro, o sexo e o poder. E em muitas ocasiões procura-se construir esferas de segredo em torno do dinheiro, por exemplo com o sigilo bancário, a falta de transparência dos paraísos fiscais… Procura-se também apostar no direito à privacidade para cobrir certos aspectos da vida íntima que, digamos, entram nessa triangulação perigosa e que a experiência nos diz que pode tornar-se muito importante para a esfera pública e para a saúde de uma democracia.
E aí, o jornalista deve investigar…
Sempre. Uma democracia saudável supõe um jornalismo de investigação robusto, desinibido e amplamente aberto – expressão que não é minha, é do Supremo Tribunal norte-americano, que diz que a democracia supõe uma “esfera pública robusta, desinibida e amplamente aberta”. No fundo, a estrutura da liberdade de expressão – seja ela a estrutura do próprio Direito em si, da ponderação do direito à liberdade de expressão com outros direitos, das normas das responsabilidades civil e penal (que fazem a mediação dessa ponderação) – não deve aniquilar essa importância fundamental que a liberdade de expressão tem para uma democracia. Não pode ter um efeito inibitório, silenciador – aberto ou encoberto, extensivo ou subtil –, sobre aqueles que se dedicam à atividade jornalística e que são muitas vezes os olhos e os ouvidos do público. Numa democracia, o povo é soberano. Escolhe os seus representantes… O voto é livre, a Constituição diz isso. Mas para ser livre, verdadeiramente, tem de se basear numa formação livre e esclarecida da opinião pública e vontade política.
Caso contrário, o voto seria uma simples questão de fé?
Exatamente. Não adianta nada ter voto livre se se basear em opiniões mal informadas, pouco esclarecidas. Na falta de conhecimento. Daí que a atividade jornalística – a liberdade de expressão, de informação, de imprensa; no fundo, todas as liberdades comunicativas – seja fundamental para a livre e esclarecida formação da opinião pública e da vontade política. E também para o controlo dos poderes sociais. Como dizia Lord Acton [historiador britânico], “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. E todos nós sabemos como é fácil, quando o poder aposta na opacidade, na falta de transparência. Isso muitas vezes é uma forma de garantir imunidade e impunidade.
Todos os poderes?
Sim, isto não se aplica só ao poder político, mas a todos os poderes – religioso, económico, financeiro e até ao científico: não é por acaso que a maior parte das pessoas condenadas pelo Tribunal de Nuremberga por crimes contra a Humanidade era médica, que trabalhava nos campos de concentração. No fundo, a ação de todos precisa de ser escrutinada. Isso é fundamental.
Quanto maior for o poder de influência…
Exatamente, e a própria comunicação precisa de ser escrutinada.
Como?
Através de uma estrutura policêntrica de comunicação social, em que também a lógica de checks and balances [teoria da separação de poderes], de poder e contra poder, de freios e contra pesos, também se aplica à própria comunicação. Daí que igualmente estrutura e viabilidade económica dos operadores sejam um bem constitucional.
Ou seja, a pluralidade dos meios de comunicação social é essencial.
Sim. Não podemos ter poucos operadores. Temos de ter uma estrutura policêntrica. Portanto, a saúde financeira, a viabilidade económica, os pressupostos materiais de subsistência dos operadores também são uma questão constitucionalmente relevante. Quem se interessa pela liberdade de expressão não pode deixar de interessar-se pelas condições concretas, económicas, em que elas exercem a sua atividade.
Deverá haver preocupação pelo impacto económico das decisões judiciais sobre a possibilidade de subsistência dos meios de comunicação social?
Deverá. Parecendo uma questão meramente económica, não é. São de relevância constitucional, são da estrutura policêntrica da comunicação social.
Sem o quarto poder, todos os outros ficam sem vigilância.
Exatamente. E não só o poder legislativo, judicial e executivo, mas também económico e financeiro. Todos os poderes sociais precisam de ser devidamente discutidos e escrutinados. Todas as ideias precisam de ser submetidas ao confronto com as ideias contrárias e todas as políticas públicas precisam de ser escrutinadas. Bem como toda a despesa pública. Toda a inter-relação entre poderes e protagonistas sociais precisa de ser devidamente escrutinada.
O comportamento social – privado e em última análise até o íntimo – de um protagonista político com poder de decisão sobre a vida de um país deve ser noticiado?
Deve.
Porquê?
Porque a política baseia-se muito nas pessoas. São as pessoas que tomam decisões. O Estado não decide sozinho. O Estado é uma ficção. Nós nunca vimos o Estado. Não podemos medir o Estado, pesar o Estado. Nós vemos pessoas. As pessoas é que tomam decisões. E as pessoas têm virtudes e vícios, aspectos bons e menos bons.
E são passíveis de serem influenciadas.
Exatamente. O perfil e o carácter têm de ser, obviamente, escrutinados. Claro que não se pretende que ninguém seja anjo, porque ninguém é absolutamente inatacável. E é exatamente porque, por um lado, precisamos dos políticos, mas, por outro, reconhecemos que eles não são anjos, que temos de escrutiná-los.
É o argumento de James Madison, apontado como pai da Constituição Americana…
Claramente. Madison, nos seus escritos de O Federalista, utilizou precisamente isso. Por os seres humanos não serem anjos é que é preciso exatamente sistemas de controlo, governos de separação de poderes. E esse argumento foi utilizado para justificar a separação de poderes e, também, obviamente, podemos dizer que o mesmo se aplica à liberdade de expressão, ela própria uma forma de controlo dos poderes. A personalidade da pessoa, a sua capacidade de decisão, de não ser influenciada, de alguma forma de, nos momentos de decisão, não ser condicionado, chantageado, por conhecimentos que os outros tenham da sua vida pessoal, íntima… Essa capacidade é muito importante. No Direito, isso é muito importante.
Por exemplo…
Por exemplo, nas normas de celebração de contratos diz-se sempre que a vontade deve ser livre e esclarecida. Quem celebra um contrato não pode estar a incorrer em erro, não pode ser vítima de dolo ou de manipulações insidiosas, para no fundo levar a contratar com pouco conhecimento daquilo que está a fazer. Não pode ser objeto de coerção, de manipulação.
E que formas há para o fazer?
Muitas. Há muitas maneiras de subtilmente condicionar a decisão e a ação dos políticos. Como eles têm de decidir não só sobre contratos, mas sobre leis, atos administrativos, decisões políticas, económicas, e há várias maneiras de os condicionar. É óbvio que uma atenção à vida pessoal pode ser importante porque muitas vezes aqueles que querem condicionar atacam precisamente por aí.
O calcanhar de Aquiles.
Exatamente.
Nesse sentido, poder-se-á argumentar que a atenção constante dos media sobre determinada pessoa relevante, poderosa, um político, por exemplo, é uma cabala?
Não, não. Isso faz parte da função dos media.
É um choradinho?
Às vezes, é. Faz lembrar o miúdo no recreio que quando está a perder vai-se queixar à mãe de que estão todos contra ele. Mas as coisas são demasiado sérias para serem colocadas nestes termos. O que está em causa é algo muito mais sério e que não é nada de pessoal. Em última análise, aquilo que se quer preservar é a boa governação, a transparência, a probidade da política e dos políticos, a própria justiça das decisões e o interesse público e o dos cidadãos, porque se houver falhas, se houver custos dessas decisões, nós sabemos muito bem onde é que essa fatura vai parar.
Os jornalistas perseguem ou controlam?
Os jornalistas têm realmente obrigação de controlar o exercício dos poderes sociais, detetando as suas patologias.
Que patologias?
Desde logo a incompetência, que deve ser detetada e denunciada. Depois, a corrupção, o tráfico de influências, o nepotismo [favorecimento de parentes ou amigos].
A simples desconfiança, o indício dessas patologias, é notícia?
Obviamente.
O “tudo leva a crer que” é legítimo?
Claro que é. A imprensa não condena um político, uma pessoa. Quem o faz são os juízes. Mas é a imprensa que deve fazer o levantamento desses indícios. E deve, no fundo, juntar os pontos. Às vezes há um indício que só por si pode parecer insignificante, mas juntando-lhe outros e outros pode começar a fazer algum sentido. Obviamente, sempre com o máximo de rigor, ouvindo o visado…
Ainda que ele recuse falar.
Exatamente. Mas o princípio é: quanto mais graves forem as imputações que se fazem sobre a vida de uma pessoa, mais sólido deve ser o fundamento. Agora, a verdade é esta: todos os indícios de patologias do poder político devem ser levantados, trazidos ao de cima.
Os políticos não gostam.
Paciência…
No fundo, não há mal quando um político participa em festas, mas pode haver no que eventualmente esteja por detrás disso.
Claro. Ninguém contesta o direito de um político divertir-se e de ter a sua vida privada. O problema é que o que a experiência de anos, séculos, de história nos diz é que há ambientes particularmente propícios, por um lado, ao desenvolvimento de correntes de círculos de amigos e de tráficos de influências, que se vai desenvolvendo de festa em festa, de evento social em evento social. E isso pode transbordar para a decisão política, para a opção económica.
É importante que a opinião pública esteja ciente, informada, dessa possibilidade de fragilidade?
Sim, claro. Obviamente. Todos sabemos isso.
E a imprensa deve fazer esse levantamento?
Sempre. Sem deixar de respeitar a dignidade da pessoa, na maneira como vai representar a pessoa, tratando-a com verdade, mas, obviamente, não deixando de reportar aquilo que pode vir a ser relevante para uma apreciação da opinião pública.
Que é o fundamento da comunicação social.
Exatamente. É uma obrigação fundamental da comunicação social. Mais: é uma obrigação de relevância constitucional. Ela tem sido afirmada unanimemente pelos tribunais constitucionais. E pelos tribunais de direitos humanos. E pela doutrina de um modo geral. A imprensa deve fazer o seu serviço com o dever de verdade, de rigor, de objetividade, e não só deve fazê-lo como não tem de pedir desculpas. Pelo contrário.
É uma função essencial para a sociedade?
Uma sociedade perde muito se não tiver essa função. É dramático se não houver essa função.
A verdade é que há jornalistas e empresas para as quais trabalham condenados por fazerem o seu trabalho.
É óbvio que os órgãos de comunicação social não podem estar isentos de responsabilidade. Mas quando esteja em causa assuntos de interesse público e de figuras públicas, normalmente todos aqueles que se dedicam à liberdade de expressão concordam que a margem de manobra do jornalismo deve ser muito maior. Há ordens jurídicas que quase negam indemnizações por imputações difamatórias ou violação da vida privada quando esteja em causa a discussão de figuras públicas…
Em França existe o “euro de honra”, por se considerar que a honra não é quantificável e que basta o tribunal dar razão ao queixoso para a reparação estar feita.
Pois, e nos Estados Unidos de um modo geral nem isso. De modo geral, não há nada.
Porquê?
Por se entender que uma das formas de censura é exatamente a possibilidade de as indemnizações serem censórias.
Os direitos de responsabilidade civil e penal podem ser censórios?
Podem e por isso deveriam ser devidamente calibrados para não se tornarem censórios.
Por exemplo, quando se aplicam multas e indemnizações que podem pôr em causa a subsistência de uma empresa de comunicação social?
Claro.
Nesse caso, há o perigo de efeito de contágio da inibição para as outras empresas?
Sem dúvida. Em primeiro lugar, no direito constitucional da liberdade de expressão há uma forte presunção no sentido da inconstitucionalidade de indemnizações demasiado altas e, como disse, alguns até vão ao ponto de negar essa possibilidade.
Por que razão?
Porque se as figuras públicas fossem agora fazer ações judiciais contra os órgãos de comunicação social por imputações do seu bom nome, da sua honra, esses órgãos não tinham outra vida senão defender-se em tribunal. Portanto alguns ordenamentos jurídicos negam essa possibilidade liminarmente. Dizem que isso não deve acontecer porque uma democracia não pode funcionar se for assim.
Mas há casos em que isso acontece.
Sim, mas tem de se ter sempre muito cuidado com as indemnizações porque há essa possibilidade de elas se tornarem censórias até mais do que a da responsabilidade penal. Em termos de estrutura de incentivos, pode ser muito mais lesiva da liberdade de expressão uma indemnização letal para um órgão de comunicação social do que um termo de identidade e residência e depois uma multa…
A responsabilidade civil é, portanto, mais ameaçadora do que a criminal?
Bem mais, bem mais. E nenhum dos casos pode ser visto à margem do direito à liberdade de expressão. E por outro lado, um político, por exemplo, que tem acesso fácil à comunicação social rapidamente pode fazer a sua defesa e minimizar substancialmente os danos. Além disso, ele tem de saber que está particularmente exposto, e portanto sujeito a um escrutínio a que a generalidade das pessoas não está porque tem de tomar decisões tão importantes para a vida de toda uma comunidade.
Neste momento discute-se muito a própria interposição de ações.
Sim e essa questão, que vai além das indemnizações, tem preocupado os cultores da liberdade de expressão. Uma maneira de os grandes interesses ou poderes se defenderem do escrutínio às vezes já nem é pedir indemnizações. É pôr ações. É encharcar os jornalistas de ações. É uma forma de assédio, de bullying.
O que leva o jornalista a pensar duas vezes antes de publicar uma notícia.
Exatamente. Às vezes, tem esse efeito. É o que se chama os SLAPS (Strategic Lawsuits Against Public Participation – Participações Estratégicas Contra Participação Pública). Ações judiciais estrategicamente colocadas contra a comunicação social para, no fundo, silenciá-la e impedir que o público participe democraticamente e faça o controlo democrático dos poderes.
Portanto, quando se condena uma empresa deve ter-se em atenção se o valor da indemnização coloca a sua subsistência em risco e se esse ato, essa decisão, pode vir a condicionar outros órgãos de comunicação social, que ficam intimidados por aquele exemplo.
Claro. Toda a comunicação social de um país depende sempre de saber como é que um juiz tem decidido em casos semelhantes – a jurisprudência.
Essa é também uma forma de censura?
Se a jurisprudência for inimiga da liberdade de expressão, é uma forma de censura. E por ser uma forma de censura, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem várias vezes condenou Portugal por censura judicial.
Uma censura aos juízes?
No fundo, todas as condenações que têm vindo são censuras aos juízes, sim. O sistema europeu pressupõe que se esgotem os recursos ordinários e que haja uma decisão de última instância. É com base nisto que se vai depois recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, portanto, vai censurar o quê?…
A decisão do juiz?
Naturalmente. O que mostra que a decisão de um juiz também pode ser censória e lesiva da liberdade de expressão.
Entrevista de Luís Martins a Jónatas Machado
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