‘O som como último colo’ a doentes em cuidados paliativos do Centro Hospitalar de Leiria

A música leva vida e serenidade aos utentes da Unidade de Internamento dos Cuidados Paliativos do Centro Hospitalar de Leiria, em Alcobaça, através do projeto ‘Aqui contigo – O som como último colo’, da Sociedade Artística e Musical dos Pousos (SAMP).

'O som como último colo' a doentes em cuidados paliativos do Centro Hospitalar de Leiria

O som começa, aos poucos, a ecoar nos corredores da Unidade de Internamento dos Cuidados Paliativos no Hospital de Alcobaça Bernardino Lopes de Oliveira, inaugurada há cerca de um ano e meio. E não é um som de festa que se escuta. São tons suaves, serenos, que transmitem uma tranquilidade incomum e que acabam por mexer com muitas emoções. De todos, mas também – e sobretudo – de quem está deitado numa cama, por vezes, sem se mexer. Nem falar.

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Raquel Gomes, David Ramy e Umberto Giancarli transportam os instrumentos que vão levar vida aos doentes em fim de vida. São utentes que sofrem, muitas vezes, em silêncio e que escondem a dor que carregam sozinhos. A dor física, mas também a dor da solidão.

A vida termina num último suspiro e o projeto ‘Aqui contigo – O som como último colo’ procura estar com as pessoas e dar-lhes qualidade e um pouco mais de alento num momento difícil. Momento que é difícil para os doentes e para a própria família.

“Não estamos com a morte. Nós levamos vida e vamos ter com pessoas com vida. Infelizmente, não é o olhar geral. Quando procurávamos apoios para este projeto, muita gente dizia que não ia apoiar um projeto que fala de morte. Era frustrante. Estas pessoas estão com vida e não é justo terminarmos este ciclo abandonados e desprezados. É como ‘já não precisamos de ir a ti porque já não votas'”, apontou a coordenadora do projeto da SAMP, Raquel Gomes.

 “Importa que até ao último suspiro dessa pessoa ela esteja consciente de que está viva

A artista salientou que o objetivo é “estar com as pessoas”. “Estou consciente de que estou aqui e de que vou partir para um sítio que eu não conheço. Tenho medo e estou sozinha. Queremos estar nesta hora com estas pessoas. Não é justo, na hora que considero mais importante da nossa vida, estarmos ali num canto”, acrescentou.

Também David Ramy considerou que “este é um projeto de vida, onde importa que até ao último suspiro dessa pessoa ela esteja consciente de que está viva”. “Nós bebemos de si e eles bebem de nós. E, em 99,9% das vezes, nós vamos muito mais cheios do que aquilo que deixamos”, sublinhou.

Johann Sebastian Bach é um dos compositores preferidos de Umberto Giancarli, que faz questão de entoar as notas de ‘Celo Suíte No1’ quando está perto dos doentes. Disse acreditar que “este homem, que viveu há 300 anos, ia apreciar esta forma de utilizar a sua música”.

Este projeto, admitiu, “muda a vida daquela pessoa”, mas também a sua. “Sinto que faz a diferença no meu percurso de vida. Este é o projeto que me levou mais intensamente para Portugal e a sair daquela que era a minha rotina de violetista do estudo clássico. Levar aquilo que aprendi para outras pessoas é um privilégio. A música leva as pessoas para outros sítios, para outras dimensões, mas, neste caso, isto acontece de forma muito mais amplificada”, reconheceu.

Umberto Giancarli admitiu sentir uma “emoção forte e grande” quando percebe a vibração que a música tem junto das pessoas enquanto toca: “É muito mais forte do que tocar numa sala de concertos, com milhares de pessoas. Tocar para uma pessoa daquela forma, assim, próxima, viva e ‘bruta’, é alguma coisa de verdadeiramente precioso”, afirmou.

“Também partilho que este é o projeto que mais me tem transformado de todos os projetos que desenvolvo na SAMP e aquele que mais me tem feito crescer. Algumas destas pessoas já não verbalizam, mas comunicam sempre de alguma forma, com um gesto, com um olhar, com a lágrima que escorre, com a mão que agarra e não solta. Lidar com estas pessoas é aprender imenso, é perceber o que é que efetivamente importa na vida, o que andamos cá a fazer e onde é que estamos a desperdiçar o tempo. E são eles que nos ensinam. Por isso, este é um momento muito especial para eles e para nós”, reforçou Raquel Gomes.

Cada gesto dos músicos sai naturalmente. Se a música e as letras estão ensaiadas num reportório que os acompanha, a meiguice, a ternura e as palavras que transmitem a cada um dos doentes, quase todos acamados e sem condições para verbalizar (em 27 de outubro, dia em que a agência Lusa acompanhou a equipa da SAMP), é genuína. Cada pegar na mão ou toque na cabeça é como um acariciar de um objeto único e raro que a qualquer momento se pode partir.

Paz e serenidade são demonstrados, mesmo por quem não fala, através de uma respiração que começa a ficar mais tranquila à medida que o som ecoa. Um leve sorriso nos lábios, um simples fechar de olhos ou uma lágrima que de repente corre numa face marcada pela dureza de uma doença incurável são evidências de como cada um está a apreciar o momento.

“Obrigado”, diz quem ainda consegue falar um pouco, ao mesmo tempo que limpa os olhos, marejados pelo momento de beleza proporcionado pelas notas que entoam do violino de Umberto, da guitarra de David e da voz e dos instrumentos de percussão de Raquel.

 

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