Cabo-verdianos sacrificam-se, mas poupam para montar os próprios negócios

Paulo começou a lavar carros em casa e com um balde, Décio esteve 10 anos a trabalhar como barbeiro por conta de outrem. Dois cabo-verdianos exemplo de muitos que graças ao que foram poupando conseguiram montar os próprios negócios.

Cabo-verdianos sacrificam-se, mas poupam para montar os próprios negócios

Paulo é um de muitos cabo-verdianos que graças ao que foram poupando conseguiram montar os seus próprios negócios. No coração de Achada de Santo António, o bairro mais populoso da cidade da Praia, Paulo Nasolini, de 47 anos, está quase sempre suado e de tronco nu. O barulho da máquina de lavar a pressão ouve-se a vários metros de distância, à medida que vão chegando os carros um a um. Nem sempre foi assim. “Comecei a lavar carros com um balde, um, dois”, começou por recordar, indicando que tudo era feito em casa, na zona do Brasil, também em Achada de Santo António, de onde é natural. Paulo já tinha o objetivo traçado: comprar uma máquina de lavar a pressão. “Fui guardando algum dinheiro, mesmo pouco. E cheguei a uma altura em que já tinha o suficiente”, contou.

Continuou a lavar carros em casa e a guardar dinheiro até que, há seis anos, montou a oficina de lavagem auto Os Tubarões, ainda sem tabela de preços, algo que adotou depois para comprar consumíveis e construir a estrutura, que é autorizada de três em três meses pela Câmara Municipal da Praia. Para conseguir tudo isso, disse que teve de poupar e de abdicar de muitas coisas. Abriu conta bancária, passou a ter contabilidade organizada e a empresa está formalizada e inscrita no Regime Especial das Micro e Pequenas Empresas (REMPE) e no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Além de carros, Paulo Nazolini faz ainda lavagem de estofos e tapetes. Passos que se orgulha de ter dado sozinho, sem ajudas nem financiamentos bancários.

O lavador tem na mente outros projetos, como ter um espaço maior, que ficaram suspensos por causa da pandemia de covid-19, que fez reduzir consideravelmente o movimento de carros e também porque teve dois filhos. “Mas é disto que vivo com os meus dois meninos”, referiu, dizendo que mesmo assim ainda consegue guardar algum dinheiro, continuando mentalizado que sem uma vida economicamente equilibrada não se consegue fazer investimento. “E tens de limitar muitas coisas que não são tão necessárias”, insistiu, afirmando que, a juntar a isso, as coisas estão mais difíceis no país, com aumento de preços e do custo de vida. Por isso, considerou que poupar é uma “rotina” e um “modo de vida” para se conseguir algum objetivo. “Mesmo sendo 100 escudos, mas tens de guardar algo”, aconselhou, lembrando que, além das despesas com consumíveis, a máquina pode precisar de manutenção.

Décio Pina, de 32 anos, é natural da ilha do Fogo. Vive há 11 anos na cidade da Praia, onde trabalha como barbeiro, sempre por conta de outrem e a maior parte dos 10 anos numa barbearia no bairro de Terra Branca. Em 2020, por causa da pandemia, passou a receber clientes em casa. Foi aí que teve o “clique” para abrir a própria barbearia, a menos de 50 metros, no mesmo bairro. “No espaço anterior, pagava 15 mil escudos de renda, mas disse para mim mesmo que se encontrasse um espaço de 16 ou 17 mil escudos, por exemplo, que poderia pagar”, recordou, dando nome de Barbearia Ideal. Tudo isto foi conseguido também graças a alguma poupança que Décio conseguiu fazer, bem como, tal como Paulo, “fazer um sacrifício” e limitar algum consumo. “Caso contrário, fica mais difícil”, salientou, insistindo que foi quase “obrigado” a abrir a sua barbearia, numa oportunidade de negócio que surgiu devido à pandemia.

Hoje, Décio Pina já tem tudo legalizado. No mesmo espaço, vende vários produtos cosméticos e de beleza e pretende ter mais funcionários e passar também a receber mulheres. O presidente da Associação para a Promoção da Educação Financeira (Profin), António Batista, disse que, com as restrições impostas pela covid-19, os gastos reduziram-se e a poupança aumentou em Cabo Verde, quer nos bancos, quer nas famílias. Para o economista, a questão que se coloca agora é onde colocar essa reserva. Notando que as pessoas querem comprar, entendeu que este é um “bom momento” para se investir esse dinheiro poupado, mas em ativos patrimoniais, que gerem emprego e rendimento, em vez de passivos.

“Esse seria o grande desafio, tentar incentivar a uma utilização mais racional, que possam promover crescimento e recuperar os empregos”, salientou o presidente da associação, que tem como missão ajudar as famílias a “tomar decisões mais inteligentes”, não só com o dinheiro, mas em relação aos alimentos, bens ou reciclagem. “Quem quer melhorar de vida tem de fazer algo diferente. Não podemos esperar resultados diferentes se continuamos a fazer sempre a mesma coisa”, desafiou Batista, notando que a pandemia veio reforçar a importância da educação financeira, da diversificação das fontes de rendimento e da poupança para momentos de imprevistos e de investir de forma criteriosa.

A poupança é um assunto abordado por várias instituições financeiras em Cabo Verde, como o Banco de Cabo Verde (NCV), que tem uma semana dedicada ao tema em outubro, na qual realiza várias atividades para sensibilizar e incentivar as pessoas para a necessidade de desenvolver competências de educação e literacia financeira. “Pretende-se contribuir para que as pessoas melhorem continuamente a gestão dos seus recursos financeiros e cultivem o hábito da poupança”, salientou o BCV, que realiza as atividades para assinalar o Dia Mundial da Poupança, celebrado em 31 de outubro, abordando ainda temas como o orçamento familiar, crédito responsável e investimento.

De acordo com o indicador de confiança no consumidor cabo-verdiano avançado pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INE), no segundo trimestre de 2021 a maior parte dos inquiridos (83,8%) considerou que a atual situação económica do país não permite poupar dinheiro. Mas houve uma redução relativamente ao período homólogo, que era de 93,2%. “Cerca de 12% dos inquiridos afirmaram ser possível poupar algum dinheiro com a atual situação económica do país sendo que, no trimestre homólogo, era de 6,6%, apresentando um acréscimo de 4,4 pontos percentuais”, salientou ainda o INE.

No 1.º Inquérito à Literacia Financeira da população adulta ativa de Cabo Verde, realizado em 2015, que teve por destinatários indivíduos de 20 a 65 anos, 45% dos inquiridos afirmou que costuma poupar e destes 1 a 2% o faz numa perspetiva de longo prazo. Ainda segundo o estudo, cerca de 53% dos inquiridos afirmam que não poupam, destes, 82% aponta como principal razão o baixo nível de rendimento, enquanto 6% não consideram a poupança como uma prioridade. Em 25 de novembro, as poupanças dos cabo-verdianos nos bancos desceram ligeiramente em setembro, para 73,6 milhões de euros, menos 0,5% face a agosto, mas mantendo-se como o segundo valor mais elevado desde o início da pandemia de covid-19, segundo dados do BCV.

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