O mito do comércio livre: como EUA manipulam os mercados globais pela supremacia económica

Para subverterem o comércio livre, mesmo depois da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), os Estados Unidos da América (EUA) continuam a subverter as regras para adulterar o comércio livre.

O mito do comércio livre: como EUA manipulam os mercados globais pela supremacia económica

O presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, aumentou drasticamente as tarifas sobre produtos fabricados na China em maio, alegando que o gigante asiático burlou o sistema “ao despejar dinheiro em empresas chinesas, prejudicando os concorrentes que cumprem as regras”. As tarifas são de 25% sobre aço e alumínio, 50% sobre semicondutores e painéis solares e 100% sobre veículos elétricos. A medida, na prática, é nitidamente contrária ao comércio livre – como aliás Jostein Hauge, professor assistente em Estudos de Desenvolvimento da Universidade de Cambridge explica.

“Sob a presidência de Biden, os EUA embarcaram numa estratégia ambiciosa para relançar as indústrias norte-americanas de alta tecnologia e tornarem-se menos dependentes das importações, especialmente da China”, enquadra Hauge. A estratégia incluiu o fornecimento de subsídios maciços às indústrias de energias renováveis ​​e de semicondutores e “os aumentos tarifários fazem claramente parte desta estratégia e não devem constituir uma surpresa para aqueles que seguiram a política comercial e industrial dos EUA nos últimos anos”.

Os padrões duplos destas políticas, “especialmente as recentes tarifas”, devem de ser abordados particularmente nos seus mecanismos ‘subterrâneos’. “Durante anos, as administrações Democratas e Republicanas nos EUA têm elogiado as virtudes do comércio livre ao resto do mundo, trabalhando no sentido de estabelecer um sistema comercial multilateral que limite a utilização de políticas protecionistas”.

A formação da Organização Mundial do Comércio (OMC) “é um grande exemplo”. Durante os anos de negociações nas décadas de 1980 e 1990 que levaram à formação da OMC, “um pequeno grupo de países poderosos – liderados pelos EUA e influenciados por grandes empresas sediadas nos EUA – usaram o seu poder e influência para reescrever as regras de comércio internacional em benefício próprio”.

O sistema que estabeleceram foi publicamente difundido como um sistema de ‘fair play’ na economia global, que “beneficiaria todos os países que nele participassem”. Contudo, na realidade, as regras da OMC “tornaram claramente mais fácil para as empresas sediadas nos EUA expandirem o seu domínio na economia mundial”. “A limitação do protecionismo, especialmente nos países em desenvolvimento, permitiu que as empresas sediadas nos EUA aumentassem o seu controlo”, diagnostica Jostein Hauge.

O rendimento que as empresas transnacionais sediadas nos EUA obtiveram das suas filiais estrangeiras, medido como uma percentagem do seu rendimento líquido total mundial, “aumentou de 17% em 1977 para 49% em 2006″. “E em 2010 foi classificado como sétimo maior parceiro comercial da China, à frente do Reino Unido.”

“Atualmente, com a balança ligeiramente equilibrada a favor da China, as sedes das maiores empresas do mundo continuam altamente concentradas nos EUA.”

As consequências mortais do mito do comércio livre

Os norte-americanos utilizaram também o quadro da OMC “para sustentar os lucros das empresas farmacêuticas sediadas nos EUA”, impedindo, no processo, que vacinas que salvam vidas chegassem aos países em desenvolvimento. “A pandemia forneceu o exemplo mais claro disso”, concorda Hauge.

No início de 2021, “houve um grande debate entre os estados membros da OMC sobre se as patentes das vacinas contra a covid deveriam ser suspensas”. As regras da OMC “protegem patentes e direitos de autor a nível mundial sob o pretexto de incentivar mais inovação” – o que é, considera o especialista em Estudos de Desenvolvimento, “irónico”.

“A ironia desta regra é que ela não apoia o livre fluxo de conhecimento tecnológico, contradizendo de certa forma o ‘mantra’ do comércio livre”. “Mas a regra é consistente com a forma como a OMC funciona na prática, na medida em que serve para proteger os interesses das empresas sediadas nos EUA.”

A forma como isto funciona “é simples”. “No papel, as regras da OMC procuram proteger a propriedade intelectual de todos. Mas, como a inovação é altamente distorcida a nível mundial, estas regras conferem enorme vantagem às grandes empresas dos países ricos que possuem infraestruturas de investigação e desenvolvimento superiores e monopólios de facto sobre a propriedade intelectual.”

O argumento para a renúncia às patentes foi o de que, durante uma pandemia global, “seria desumano e ganancioso impedir que os países em desenvolvimento tivessem acesso às melhores vacinas”.

Qual foi o resultado deste debate? “Os EUA, juntamente com mais alguns países de rendimento elevado, votaram pelo bloqueio da renúncia às patentes de vacinas”, impedindo “que muitos países mais pobres tivessem acesso às vacinas de empresas como a Pfizer”.

Ter tido acesso às vacinas desde o início da pandemia “poderia ter salvado milhares de vidas nestes países, especialmente naqueles com capacidade decente de produção de vacinas, como a Índia”. Um estudo publicado em 2023 concluiu que mais de 50% das mortes por covid em países de baixo e médio rendimento “poderiam ter sido evitadas se as pessoas tivessem o mesmo acesso às vacinas que os estados ricos”.

Ao aumentar as tarifas sobre produtos fabricados na China, os EUA “estão mais uma vez a tentar distorcer e a alterar as regras do comércio internacional a seu favor”, defende Jostein Hauge. “Depois de trabalhar incansavelmente para estabelecer um sistema de comércio livre, os EUA estão agora a dar uma volta de 180 graus e impuseram algumas das tarifas mais acentuadas que alguma vez vimos por uma grande economia nos últimos anos.”

A política comercial norte-americana “teve sempre como objetivo proteger os interesses das empresas sediadas nos EUA, por isso isto não deveria ser uma surpresa”. “Esta hipocrisia da administração Biden deve de ser denunciada.”

No atual sistema comercial multilateral baseado em normas, “a China também não cumpriu inteiramente as regras“, embora “não tenha chegado sequer perto de tentar mudar as regras para funcionarem a seu favor tanto quanto os EUA”. “Então, quem está realmente a adulterar as regras?”

The Conversation

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