Passo a passo: O relato de uma peregrinação a Fátima
Dois dias, 70,6 quilómetros e 115.759 passos. Caminhámos do Cartaxo a Fátima lado a lado com mais de 150 peregrinos. Os pés estão doridos e o coração repleto de emoção.
Dia 1 – Do Cartaxo a Pernes – 60.418 passos
São 6h20. O despertador toca e é hora de calçar as sandálias com meias para começar a caminhada. O ponto de encontro é na igreja do Cartaxo. Os peregrinos vão chegando. A maioria já vem de Aveiras, foi lá que o Grupo de Jovens de Aveiras de Cima começou esta jornada há 30 anos.
Todos se sentam para ouvir a primeira leitura. Este é o início do guião que irá nas mochilas ao longo dos próximos 70 quilómetros.
Passo a passo começa a peregrinação. Do Cartaxo ao Vale de Santarém caem algumas gotas de água. Colocam-se capas, chapéus e coletes refletores, amarelos fluorescentes com a frase “sou peregrino”. Ninguém pode ser invisível nas estradas onde, apesar de serem nacionais, passam centenas de carros.
A segunda paragem é no Vale de Santarém. As roupas estão molhadas e o chão da igreja fica escorregadio. Após a leitura canta-se “e a vida não vai parar, é como o vento, tens tudo a dar, não percas tempo. Podes saber que vais chegar onde Deus te levar”. A energia do cântico invade o corpo para mais uns quilómetros até Santarém.
Chegou a pausa para o almoço. Há quem opte por uma sopa, há quem escolha um hambúrguer no McDonald’s. O importante é repor as vitaminas para continuar.
Mais uns quilómetros, mais uma paragem. É na Póvoa de Santarém que o padre António se junta ao grupo para a segunda reflexão. “A peregrinação nasce muito antes da grande viagem do peregrino. Foi um familiar, um amigo, uma história, um desgosto, uma inspiração. E talvez convenha perceber a proveniência desses sinais, porque um vem de Deus”, lê-se nas primeiras linhas.
Já começa a custar levantar dos bancos da igreja. As pernas estão mais pesadas, os pés já têm bolhas. A chegada a Pernes ainda está longe.
A última paragem do primeiro dia da aventura é Torre do Bispo. “Penitência e oração” é o tema predominante num momento em que a chegada é mais desejada do que nunca. A melodia da guitarras chega aos quatro cantos da igreja que é a mais pequena de todas. Os peregrinos estão sentados nos bancos e no altar. Já não interessa o local, basta um pedaço de chão para descansar.
De volta à caminhada. Vê-se ao longe o quartel dos bombeiros onde os mais de 150 peregrinos vão dormir. Há filas para o banho.
No pavilhão ao lado são distribuídas sopas, quentes e reconfortantes. Numa das mesas há pão caseiro, aquele pão que faz lembrar a infância na casa da avó.
Estendem-se as esteiras. São poucos os centímetros que separam os sacos camas. Há quem durma profundamente, há quem não consiga fechar os olhos.
Dia 2 – De Pernes a Fátima – 55.341 passos
São 4h00. Quem o conseguiu fazer, dormiu cerca de cinco horas. Depois dos 34,9 quilómetros do primeiro dia, o corpo está debilitado.
Às 5h00 em ponto o padre António apita (sim, existe um apito para reunir o grupo). Começa a caminhada ainda de noite.
Quando o sol começa a nascer, o grupo começa a rezar o terço. Passo a passo, palavra a palavra. Unidos. Os músculos demoram a aquecer e o frio que se faz sentir tende a dificultar o caminho. Nem os raios de sol ajudam.
A primeira paragem do dia é em Alcanena. Já passaram quatro horas desde a saída de Pernes. Um dos poucos cafés abertos na vila é invadido pelo grupo. Preparam-se pães de Deus e torradas para aconchegar o estômago e a alma.
Depois do pequeno-almoço a reunião é na igreja a cerca de 100 metros de distância. Igreja essa que está fechada, por isso, a reflexão é feita à porta, na rua. Chegou a hora de cantar a música que marca esta peregrinação. O refrão diz “senhor a Ti me entrego com todo o coração. Eu nunca fui tão sincero, não sei mais o que fazer, sem ti eu não sei viver”. É a letra que melhor ilustra o tema de 2017: “aqui estamos”.
Seguem-se mais uns quilómetros. Entre pernas doridas e bolhas rebentadas. Fica em Moitas Vendas a próxima igreja. Antes da subida da serra é feita a última leitura. “Louvamos e bendizemos todas as maravilhas e milagres”, diz o guião. E assim é. Cada árvore, cada flor, cada casa caiada de branco. Tudo é olhado como uma maravilha no meio da dor.
As subidas são cada vez mais íngremes e o cansaço não ajuda. Em tom de brincadeira começa-se a descrever o que é que não dói. Como o cabelo ou as unhas das mãos.
À espera do grupo está um pavilhão com mesas postas na rua. Os pratos enchem-se de arroz, frango e salada. Há novamente pão caseiro. Também há vinho, tinto ou branco. Alguns peregrinos decidiram comprá-lo pelo caminho para “regar a refeição”, como diz o senhor prior.
Para a digestão, o chão enche-se de plásticos e todos se deitam com as pernas para cima, encostados à parede. Há que contrariar o inchaço e ajudar a circulação. Colocam-se mais pensos, trocam-se as meias. Cheira a Picalm e a Elmetacin. São dois dos sprays favoritos para a dores.
Mais um apito, mais uma caminhada. A próxima etapa é a subida do caminhos de Santiago. Chamam-se assim porque são um dos muitos caminhos pelos quais passam tantos peregrinos. Pedra a pedra, numa subida que parece interminável.
Na parede está uma frase escrita com spray encarnado. “Covão Coelho a Fátima 12 quilómetros.”
Chega a reta final. Uma ligeira pausa para recuperar e começa a passadeira laranja que não tem fim à vista. Passadeira e árvores, árvores e passadeira. Durante dez quilómetros parece não existir mais nada.
Ao longe vê-se uma placa que indica aproximação a uma bomba de gasolina. “300 metros.” Come-se o tradicional gelado para repor os açúcares e dar um incentivo.
Faltam apenas seis quilómetros. Depois de mais uma reta e uma subida vê-se a rotunda das oliveiras.
Todos sabem que a partir dali são três rotundas. Há mais uma pausa onde se aguarda pelo padre António. Aos 78 anos ainda teima em acompanhar os peregrinos durante as partes mais marcantes do percurso.
Começa a ver-se a rotunda dos pastorinhos. A tão aguardada rotunda que significa a chegada. A tão ansiada chegada.
Sucedem-se os abraços, as lágrimas e o terço. A “Avé Maria” e o “Pai Nosso” são proferidos até à entrada no Santuário.
Ajoelhamo-nos em pleno recinto para a consagração a Nossa Senhora. As pernas estão doridas, os pés calejados, as costas cansadas, mas o coração… Esse condutor desta viagem é impossível de descrever.
Texto: Mariana de Almeida, a jornalista que calçou as sandálias com meias e decidiu escrever sobre o que viveu durante dois dias, 70,6 quilómetros e 115.759 passos
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