Esta enfermeira nasceu em corpo de homem e conta a história de como se tornou mulher
Já se perguntou como seria se acordasse num corpo diferente? Como seria se se olhasse ao espelho e não reconhecesse o reflexo que vê?
Esta é a realidade de pessoas que vivem com disforia de género. Ser-se transgénero é ter a condição em que a perceção da própria identidade não corresponde ao sexo biológico. Afeta parte significativa da população, com estimativa de 0,5% a 1%. Embora ainda não seja completamente compreendida, estudos sugerem uma ligação entre a estrutura cerebral e a perceção de género.
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Alguns estudos de imagem cerebral têm demonstrado que as diferenças estruturais e funcionais no cérebro podem estar associadas a esta condição. Um artigo de revisão do neurocientista Fabiano de Abreu Agrela Rodrigues e dos médicos Francis Moreira da Silveira e Bruno Loser Hemerly sobre o tema procurou compreender a literatura existente sobre disforia de género, analisando a sua complexidade e multifatorialidade.
O periódico destaca que a amígdala, região do cérebro responsável pela regulação das emoções, pode ser menor em indivíduos transgénero do que em indivíduos cisgénero. Além disso, as áreas do cérebro responsáveis por processar informações sensoriais e corporais podem ser diferentes entre estes indivíduos. Estudos também sugerem alterações no hipotálamo e no córtex pré-frontal associados a mudanças na atividade de neurotransmissores e na conectividade cerebral.
O que é ser-se transgénero
Uma das descobertas mais recentes é que a diferenciação de género no cérebro pode ocorrer antes do nascimento, com diferenças na formação de nervos e na atividade de neurotransmissores. Além disso, investigações sugerem que pessoas transgénero podem ter características cerebrais mais semelhantes ao género com o qual se identificam do que ao atribuído ao nascimento. Estes estudos são realizados por intermédio de diversas técnicas, como ressonância magnética funcional (fMRI) e estudos de neuroquímica e conectividade cerebral.
A disforia pode ser percebida em crianças, adolescentes e adultos. Identificá-la na infância, contudo pode ser um desafio. É necessário observar critérios como a existência de uma acentuada incongruência entre o género expressado e o sexo biológico, persistente por, pelo menos, seis meses e manifestada por diversos sintomas, como o forte desejo de pertencer ao outro género, forte preferência por papéis inversos de género em brincadeiras e forte preferência por brinquedos ou atividades típicas do género contrário.
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Também é importante observar se há forte desgosto com a própria anatomia. Nos adultos, o diagnóstico requer, além disso, um forte desejo de mudar as próprias características sexuais. Júlia Maria de Oliveira Melo, 22 anos, é enfermeira e conta como foi a sua infância antes da transição “Sempre sofri bullying. Era vista como um gay afeminado, porque brincava somente com bonecas, gostava de personagens femininas, de roupas femininas, as minhas melhores amigas eram mulheres. A minha mãe conta que eu colocava a fralda em cima da cabeça, como se fosse uma peruca, e fingia ser a Joelma.
“Já com 14 anos, veio falar comigo. Disse-me que sabia que eu era diferente. Eu já sabia, mas estava a entrar em depressão porque não conseguia assumir-se. Inicialmente, assumi-me bissexual. Depois, gay. Comecei a usar maquilhagem, mas ainda sofria problemas de autoestima”, relata Júlia.
“Usava cinta para ficar com a cintura marcada e sutiã com papel higiénico
A disforia tem sido estudada sob várias perspetivas, incluindo na psicanálise. Teorias sugerem que a formação da identidade de gênero começa na infância, influenciada por fatores familiares, sociais e questões psicológicas como identificação com o pai ou com a mãe. Jacques Lacan, psicanalista do século XX, desenvolveu uma teoria da subjetividade que inclui conceitos relevantes.
Lacan argumenta que a formação da identidade de género está ligada à construção da identidade subjetiva, influenciada por fatores como modelos de comportamento de género fornecidos pela família e pela sociedade, bem como por questões de linguagem e representação de símbolos de cada sociedade.
Ainda assim, esta abordagem tem limitações, já que não leva em conta perspetivas e experiências das pessoas com disforia. Embora a psicanálise lacaniana tenha sido útil para entender o tema, é importante continuar a pesquisar e a desenvolver abordagens mais eficazes para entender mais sobre os transgénero.
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A atuação da psiquiatria em relação à disforia baseia-se em evidências científicas e enfatiza o respeito pela identidade de género. A intervenção clínica inclui terapia, tratamento hormonal e cirurgia de readequação genital, se desejado. Profissionais da saúde recomendam abordagens como a terapia de aceitação e compromisso ou a terapia de orientação de género, reconhecidas pelo DSM-5-TR e o CID-11 como parte do processo de transição.
Estas abordagens ajudam a explorar e a compreender a identidade, além de fornecerem suporte emocional e psicológico para lidar com os desafios enfrentados. “Demorei a começar a transição, porque tive medo. Antes de entender-me como mulher, tive disforia. Mesmo considerando-me homem gay, usava cinta para ficar com a cintura marcada, sutiã com papel higiénico e fazia de tudo para ficar feminina.
“Criava fakes e apresentava-e online como mulher. Não estava feliz. Na pandemia, coloquei tranças e comecei a sentir-me muito mais confortável. Mais feminina. Comecei a usar aplicativos para diminuir características masculinas nas fotografias”, afirma a enfermeira.
“Receei não ficar feminina, não ser vista como mulher, não encontrar namorado”
É crucial considerar diversos fatores para entender a disforia de género, principalmente quando se fala de saúde mental. Um estudo de 2014 assinala que 41% das pessoas com disforia de género relataram pelo menos uma tentativa de suicídio na vida. Noutro estudo, de 2019, permitiu a conclusão de que 39% relataram o mesmo. Muitos não recebem o apoio emocional e social necessário, sofrem discriminação e dificuldades na transição, agravando doenças como depressão e ansiedade, o que aumenta o risco de suicídio.
Os profissionais devem trabalhar em lógica multidisciplinar para fornecer tratamento personalizado e eficaz a cada indivíduo, visando melhorar a sua qualidade de vida e atingir uma identidade de género coerente. “Na pandemia, a minha mãe veio falar comigo e disse que sabia que eu era uma mulher transgénero, e não um homem gay. Sempre me apoiou. Os meus irmãos também. E isso foi muito importante. O apoio familiar é maravilhoso.
“A minha mãe frequentava um grupo de pais pela diversidade e, como a minha cidade é pequena, foi orientada para ajudar-me a iniciar a transição, passando por um endocrinologista. Eu estava finalmente pronta a iniciar o processo, embora tivesse alguns medos. Receei não ficar feminina, não ser vista como mulher, não encontrar namorado, de ser vista só como fetiche. Tive apoio de uma psicóloga, comecei a tomar hormonas… Foi muito difícil. Foi um turbilhão de emoções e a disforia aumenta bastante durante o processo”, conta.
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A identificação destes sinais cerebrais específicos pode ser crucial para a construção de diagnósticos e apoio mais preciso para pessoas que lidam com a disforia. As neurociências e os avanços científicos podem fornecer informações valiosas para uma compreensão maior sobre o tema. O que, por sua vez, pode ajudar a desmistificar e a diminuir o preconceito e o estigma.
“Lidamos com muito preconceito. Diversos homens acham que sou prostituta. Há muito estigma. Tenho a sorte de dizer que nunca fui agredida na rua, que tenho apoio da minha família e um emprego que amo. Sou a primeira mulher transgénero formada na minha região e tenho um namorado que me assume.
“Mas esta não é a realidade de todas”, finaliza a enfermeira. É essencial que a sociedade trabalhe para combater a discriminação contra pessoas transgénero, garantindo que tenham acesso a direitos básicos, como cuidados de saúde adequados. O estudo contou com o apoio do CPAH – Centro de Pesquisas e Análises Heráclito. Os autores são Fabiano de Abreu Agrela Rodrigues, pós PhD em neurociência, mestre em psicologia e biólogo, Francis Moreira da Silveira, médico e psiquiatra mestre em neurociência, e o médico Bruno Loser Hemerly.
Texto: Luís Martins;
Imagem ilustrativa
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