Ana Rita Cavaco alerta para “problema de Saúde Pública” por escassez de enfermeiros em Portugal
Demissões, vagas por preencher, descontentamento e queixas de falta de condições. Médicos e enfermeiros portugueses vivem dura batalha, acentuada na pandemia, e queixam-se de serem poucos. Serão mesmo?
Portugal é o nono país do Mundo com mais médicos por cada mil habitantes, mas está muito longe do topo em número de enfermeiros pelo mesmo número de cidadãos. De acordo com a organização Our World in Data (O Nosso Mundo em Números), temos 5,12 médicos para cada mil cidadãos e 6,97 enfermeiros por cada mil habitantes. No ranking mundial, somos o 9.º país do Mundo com mais médicos, mas caímos para 42.º em número de enfermeiros. E, “claro que sim”, considera a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, estamos perante um perigo para a Saúde Pública, pois “não basta abrir camas se não há enfermeiros para cuidar”. “Estudos internacionais já demonstraram que, por cada doente a mais ao cuidado de um enfermeiro, a mortalidade sobe 7% nos hospitais. É da vida das pessoas que estamos a falar”, alerta Ana Rita Cavaco.
Portugal é o 50.º país do Mundo em termos de confiança que os cidadãos colocam nos cuidados de Saúde prestados por estes dois tipos de profissionais: 88,60%. Estamos muito longe da Noruega, em que o nível de confiança é o mais alto do Mundo: 98,20%. Pode concluir-se que, ao contrário de nós, os noruegueses têm confiança total na Medicina e na Enfermagem. Porquê, se a Noruega tem muitíssimo menos médicos do que nós, 2,92 para cada mil habitantes? Poderá ser pelo número de enfermeiros (18,22), quase três vezes superior ao nosso (6,97%)?
Nível de confiança dos cidadãos em médicos e enfermeiros
Médicos por cada mil habitantes
Enfermeiros por cada mil habitantes
Investimento do Governo na Saúde
A receita para a confiança dos cidadãos noruegueses nos serviços de Saúde prestados não estará na quantidade de médicos (muito inferior à nossa). Pode estar no triplo de enfermeiros que têm em relação a Portugal e residir ainda num terceiro ingrediente, a despesa que os Governos disponibilizam para o setor. De acordo com os dados mais recentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), o Governo norueguês disponibilizou (em 2020) 5.160,49 euros para cada habitante – correspondentes a 9,8% do Produto Interno Bruto per capita (PIB). No mesmo período, o nosso Governo dedicou 1.915,51 euros a cada português – 6,6% do PIB per capita.
Ana Rita Cavaco pede mais 30 mil enfermeiros para os 10 anos
Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros (OE), reafirma o “problema crónico na contratação”, fruto do “subfinanciamento da Saúde”. Desde 2016, muito antes de haver qualquer suspeita de pandemia, que a OE tem alertado para a necessidade de “contratar três mil enfermeiros por ano, durante dez anos, para ultrapassar a falta” destes profissionais nos serviços de Saúde. “Portugal é dos países que investe menos na Saúde e nos seus recursos humanos”, constata Ana Rita Cavaco. “E se ainda temos um dos melhores serviços nacionais de Saúde do Mundo apenas aos profissionais se deve. Portugal tem um problema crónico de subfinanciamento da Saúde e um problema crónico na contratação de enfermeiros, não na formação.”
Também convidados pelo Portal de Notícias a responderem às questões que este artigo apresenta – de que os médicos em Portugal serão suficientes e de que os enfermeiros estão longe do que é o retrato médio dos países da OCDE –, Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, e Marta Temido, ministra da Saúde, ainda não responderam. No caso da ministra, a “agenda muito preenchida e o surgimento da nova variante, Omicron“, explicam a ausência de comentário. Da Ordem dos Médicos, porém, apenas silêncio, apesar da nossa insistência nos últimos dias.
A resposta aos utentes de Saúde mais eficaz está na necessidade inequívoca, apreende-se do que diz a bastonária da OE, na contratação de mais enfermeiros. “A Noruega tem, de facto, o triplo destes profissionais do que Portugal e metade dos médicos – que ainda assim têm um rácio acima da média da OCDE. O que Portugal precisa é de contratar enfermeiros, ao invés de deixá-los emigrar. Como a Ordem já sugeriu em 2016, seria necessário contratar três mil por ano, durante dez anos, para ultrapassar a falta nos serviços de Saúde.”
Exaustão, desmotivação e revolta
O preço que os profissionais do setor da enfermagem pagam em Portugal vem em três moedas caras: exaustão, desmotivação e revolta, diz Ana Rita Cavaco. “Estamos exaustos, sem motivação e revoltados pela forma como somos tratados. E isso vê-se nos números da emigração de enfermeiros. Mesmo em plena pandemia, em 2020, emigraram 1.230” profissionais. Neste sentido, os que ficam vivem num estado em que – “claro que sim” – estamos perante um perigo para a Saúde Pública, pois “não basta abrir camas se não há enfermeiros para cuidar”. “Estudos internacionais já demonstraram que, por cada doente a mais ao cuidado de um enfermeiro, a mortalidade sobe 7% nos hospitais. É da vida das pessoas que estamos a falar.”
O Governo deveria, inevitavelmente, “contratar, contratar, contratar” enfermeiros. “Mas para contratá-los e fazer com que estes fiquem em Portugal é preciso dar-lhes uma carreira, que não têm neste momento. Pagam a sua formação especializada e levam 980 euros para casa com um ou com 20 anos de profissão”, reclama a bastonária. Por isso, é necessária “uma política de retenção de enfermeiros que passe pela valorização da carreira”. “Não é com 900 euros e contratos de quatro meses que mantemos enfermeiros em Portugal, quando as políticas de contratação dos países estrangeiros são cada vez mais agressivas: pagam-lhes bem, pagam-lhes a formação e, acima de tudo, tratam-nos bem e respeitam-nos.”
Retenção ‘coerciva’ de profissionais formados pelo Estado “não”
Obrigar os enfermeiros formados pelo Estado – tal como os médicos ou os professores – a terem de iniciar e exercer no Estado até que os custos da sua formação tivessem sido ‘saldados’ para com o contribuinte e só depois poderem escolher ficar ou sair – para o privado ou para o estrangeiro – seria uma medida ‘coerciva’ que Ana Rita Cavaco rejeita liminarmente. “Claro que não. Então e os médicos e os psicólogos e os professores? Também lhes pagam a formação, mais até que aos enfermeiros. Ao contrário dos médicos, os enfermeiros têm de pagar a especialidade do próprio bolso e fazê-la no seu tempo, não em serviço. A formação é, antes de mais, um investimento pessoal e a Educação, tal como a Saúde, é um bem público tendencialmente gratuito. O problema não está no dinheiro que o Estado gasta na formação, mas sim no desinvestimento nas suas próprias pessoas. O livre acesso ao trabalho é um direito constitucional e nós ainda vivemos num país democrático.”
Texto: Luís Martins
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