Bebé sem rosto | Mães marcadas pelo mesmo médico exigem justiça

Ana, Vanessa e Carla cruzaram-se pelos piores motivos: terão sido vítimas de negligência médica por parte de Artur Carvalho, o obstetra que não detetou as malformações graves do bebé sem rosto. Estas mães pedem agora que «se faça justiça» e que «ninguém se esqueça» dos seus filhos.

Artur Carvalho, chefe de serviço de obstetrícia e ginecologia do Hospital de Setúbal há 29 anos, foi suspenso preventivamente até seis meses pelo Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos, depois de Rodrigo – conhecido por bebé sem rosto – ter nascido a 7 de outubro último, sem olhos, nariz e uma parte do crânio. No entanto, o médico soma processos de alegada negligência, casos arquivados, e já tem mais de 14 queixas na Ordem dos Médicos. Ana – que prefere não dar a cara –, Vanessa e Carla cruzaram-se pelos piores motivos: terão sido vítimas de negligência médica por parte de Artur Carvalho. Pedem agora «justiça» e que «ninguém se esqueça» dos seus filhos, relatando as suas histórias ao Portal de Notícias.

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Sem queixo e com pernas viradas ao contrário. Outro caso do médico do bebé sem rosto

Vanessa e Ana só descobriram as malformações dos filhos após o parto

Simão, filho de Ana, nasceu a 29 de março de 2010 com malformações no ânus, bexiga, pénis, coluna e ancas. Diana, filha de Vanessa, veio ao mundo a 10 de janeiro de 2016 sem ânus, vagina e tinha aquilo que os médicos pensaram ser espinha bifída, mas os exames mais recentes revelaram tratar-se de uma medula ancorada que pode levar ao «colapso do único rim que ela tem».

Ecografias «não duravam mais do que 10 minutos»

Ambas só descobriram as malformações dos bebés depois do parto. Até então, a gravidez correu sempre bem e os relatórios das ecografias mostravam que estava tudo normal com o feto. «Rápidas, sem grandes explicações e sem durarem mais do que 10 minutos.» É desta forma que Vanessa descreve as consultas que teve com Artur Carvalho. «Cheguei a perguntar à minha avó, que me acompanhava nas ecografias, se era normal ser tão rápido».

«Foram os meus familiares que me contaram o que se estava a passar»

Diana nasceu às 34 semanas no Hospital Garcia de Orta, em Almada. Nada previa um parto prematuro. «Entrei no hospital às 7 da manhã, e a minha filha nasceu às quatro da tarde de cesariana. Pensava que tinha perdido o líquido amniótico, mas a bolsa nem estava ‘estoirada’. A Diana não tinha mesmo líquido algum».

 

Última ecografia, antes do parto (prematuro). Realizada às 21 semanas. Diana não tinha líquido amniótico e só tinha um rim, ao invés do que diz na ecografia

Vanessa levou anestesia geral na cesariana e, por isso, não tem memórias do parto. «Foram os meus familiares que me contaram o que se estava a passar. Quando acordei não havia médicos, porque estavam em mudança de turnos. A primeira vez que falei com um foi para assinar um termo de responsabilidade para a minha filha ser operada. Disseram-me que a Diana podia estar em risco de vida e que aquela cirurgia era fundamental.» Viu a filha três dias após a operação. «Fizeram-lhe uma colostomia que, supostamente, seria um procedimento de alguns meses, mas a verdade é que durou dois anos».

Ana não apresentou queixa contra o médico, a conselho de uma advogada

Na altura, não apresentou queixa contra Artur Carvalho, a conselho de uma advogada. «Disse-me que era uma perda de dinheiro e de tempo.» Ana Cabral também não processou o médico quando o filho nasceu. «No tribunal disseram-me que o médico tem o direito de errar uma vez na vida.»

A mãe do menino recorda a «tranquilidade» da sua gravidez e a «rapidez das consultas» com o médico. «Em cinco minutos ficávamos despachadas e tínhamos de perguntar se estava tudo bem. Estranhei, mas pensei que ele, enquanto médico, soubesse o que estava a fazer.»

«Nunca vou esquecer-me das palavras dele: ‘Vai para o hospital e vai ter uma surpresa’.»

Na primeira ecografia, Artur Carvalho disse-lhe que ia ter uma menina. «Fiquei muito feliz», conta Ana Cabral, que já tinha um rapaz. Contudo, na segunda ecografia, o médico voltou atrás com a palavra e afirmou que o bebé era, afinal, do sexo masculino. «Nunca vou esquecer-me das palavras dele: ‘Vai para o hospital e vai ter uma surpresa’. Disse-me isto às 34 semanas e o Simão nasceu às 35.»

 

Ecografia em que Artur Carvalho revela que Ana Cabral vai ter uma menina

Assim que nasceu, os médicos comunicaram a Ana Cabral que o bebé tinha um problema e foi de imediato transferido para o Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. «Só aí realizaram o exame para saberem se era menino ou menina, porque como nasceu sem pénis não dava para ver».

Mães não têm tido apoio financeiro

Ao longo destes três anos marcados por cinco cirurgias – com a sexta já agendada – vários tratamentos e cuidados higiénicos diários, Vanessa não teve qualquer apoio financeiro. «A medicação, as compressas esterilizadas, líquidos de desinfeção e pomadas anestésicas sou eu quem paga». Encontrou este ano uma escola que aceita as condições da filha. «É privada e também sou eu que tenho de suportar as despesas». Vanessa pôde, assim, regressar ao mercado de trabalho.

Ana Cabral também não tem tido apoio. Só há 7 meses é que o Estado comparticipa as sondas utilizadas para tirar a urina ao filho. Cada uma custa 40 euros é descartável. «Muitas vezes, tive de usar a mesma para mais do que uma utilização, porque não tinha dinheiro», recorda. A mãe do menino não trabalha para acompanhar o filho. «De três em três horas tenho de ir à escola do Simão para lhe trocar a sonda».

Vítimas de Artur Carvalho levam hoje uma vida «normal dentro das suas limitações»

Simão já fez 13 operações. A última foi em 2016. «Para já, a médica não quer fazer mais nenhuma intervenção devido à diabetes, mas, de futuro, terá de ser submetido a uma operação para reconstruir o pénis». O menino ainda usa fralda, porque «não controla as necessidades». Apesar das adversidades, a vida da criança corre dentro da normalidade. «Ele brinca com o problema dele. Há dias disse-me que tinha uma namorada e que ela não se importava que ele usasse fraldas.»

Diana também se encontra «bem». «Tem uma vida normal dentro das suas limitações, com algumas dificuldades a andar. Cognitivamente não tem qualquer problema», revela a mãe da menina.

Juntas pelo sentido de justiça

Vanessa e Ana tomaram conhecimento dos outros casos através da comunicação social. Tal como Carla Rosa, também seguida por Artur Carvalho na clínica Padre Cruz, em Almada. «Estava numas bombas de gasolina quando ouvi uma senhora dizer o nome do médico e da clinica e fiquei alerta». Quando chegou a casa confirmou o que já suspeitava: tinha sido seguida por este obstetra, na mesma clínica e, a par das outras mãe, também ela tem uma história para contar.

 

Última ecografia que Carla fez. Segundo o relatório, tudo parecia estar aparentemente «normal»

Carla também foi acompanhada pelo mesmo médico

A 30 de junho de 2010, aos nove meses de gestação, Carla deu à luz Martim, o segundo filho, que veio juntar-se a Gonçalo, na altura com cinco anos. Depois de uma gestação sem quaisquer problemas, fez o parto no Hospital de Abrantes, por se encontrar de férias no Entroncamento. Minutos depois de Martim ter vindo ao Mundo, colocaram-lhe o bebé em cima da barriga, mas rapidamente o voltaram a levar para outra sala.

«Fiquei apreensiva. Passados 20 minutos, ainda estava a ser cosida, o médico aproximou-se da minha cabeceira e perguntou-se se sabia o que era a síndrome de Down», recorda Carla com os olhos cheios de água, contando que ficou em choque e só conseguiu responder que sim com a cabeça. «‘Suspeitamos desta doença, mas vamos pedir uma análise para o Instituto Ricardo Jorge’», disse-lhe o médico, algo que se veio a confirmar-se um mês depois já com o resultado na mão.

Mãe de Martim viveu durante quatro ano dependente de antidepressivos

A vida desta mãe mudou 180 graus. Só teve vontade em sair de casa passados meses e, durante quatro anos, viveu dependente de antidepressivos, tendo recebido apoio psicológico. «Estive muito mal… tiraram-me o chão», reconhece Carla, que nunca rejeitou o bebé: «Sempre o amei». Na altura, pensou questionar o médico, tal era o tamanho da sua revolta. «Não percebia como o médico não tinha detetado nada nas ecografias, que só duravam uns escassos cinco minutos».

O seu impulso foi travado pelo marido, que insistia só terem um caminho: ‘arregaçar as mangas’ e seguir em frente. Aquilo que fizeram até agora. «Com estas notícias revivi aquilo que me aconteceu até, porque sempre fiquei com a ideia de que algo não batia certo na minha história». Carla, Vanessa e Ana juntaram-se a outros pais – todos com algo para contar sobre Artur Carvalho – criaram um grupo no WhatsApp e estão a ser agora acompanhadas pelo mesmo advogado.

Carla exige justiça: «Ele não pode ficar impune»

«Ele não pode ficar impune», sublinha esta mãe que sabe do caso de outra senhora que foi acompanhada pelo mesmo obstetra e descobriu aos quatro meses de gestação que o bebé estava morto. Quando questionou o médico sobre o que fazer, a resposta dele terá sido: «‘Agora expulsa-o sozinho, cai sozinho’. Como é possível alguém dizer isso a uma grávida que teve de ir para o Hospital Garcia de Orta e fazer um parto normal?!» questiona incrédula.

Martim esteve com a mãe até aos 12 meses e, atualmente, com nove anos, frequenta o terceiro ano numa escola de ensino regular. «No entanto, ele tem um atraso cognitivo de dois anos», explica a mãe, lamentando que o Estado não comparticipe as muitas terapias (fala e ocupacional) de que o filho precisa. «Os outros meninos gostam muito dele… Agora só quero justiça».

Texto: Carla S. Rodrigues e Jéssica dos Santos | WIN; Fotos: Zito Colaço

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